Capítulo 4 Quatro

A noite havia sido muito longa para Selena, pois não conseguiu dormir direito já que seu mundo estava desmoronando. Alternou entre ficar acordada e breves cochilos por causa do cansaço físico e mental. Notou quando o dia começava a clarear, assim tratou logo de se levantar, não iria aguentar ficar mais deitada.

Ao chegar na cozinha, notou que sua mãe já estava de pé e preparava o chá de todos os dias.

- Bom dia, Selena. Me parece que não teve uma boa noite de sono também.

- Não, mãe.

- Seu irmão ainda não apareceu desde ontem e o pior de tudo é que fui ao seu quarto e notei que suas coisas não estão mais lá. - Seus olhos umedeceram. - Isso quer dizer que...

- Sim, mãe. Ele cumpriu a promessa que havia feito. Ele partiu.

- Sem nem ao menos se despedir de mim?

- Ele sabia que seria muito doloroso e a senhora ia tentar impedi-lo. - Ela fez silêncio e respirou profundamente para tentar continuar sem sucumbir ao choro. - Ele prometeu que voltaria e sabe que o Raven sempre cumpre com suas promessas, não é? - Selena tentava ser forte por sua mãe. - Algo precisa ser feito, nossa vida está desmoronando e Raven decidiu lutar por nós.

- Eu só queria vocês aqui comigo...

- Eu sei, mamãe. Também queria que ele ficasse, mas acho que ele tem razão.

Dogan surgiu detrás delas: - Então quer dizer que aquele idiota resolveu mesmo partir? Por mim, não precisa voltar nunca mais.

- Não fale assim, Dogan. É nosso filho!

- Um rato que decidiu abandonar o barco que começa a afundar.

- E por que o barco está afundando? - Selena o encarou com raiva.

- Olha aqui, menina. Não ouse me enfrentar, é uma imunda que nem deveria mais estar sob meu teto. Dê-se por satisfeita por ainda estar aqui. Quanto menos bocas para se alimentar, melhor.

Encerrado seu falatório, Dogan saiu de casa. Havia se tornado a pior pessoa daquele lugar. Jamais em sua vida, Selena imaginou enxergar seu pai daquela forma, estava muito longe daquele homem carinhoso que contava lindas histórias e enchia seu coração de ternura.

Dogan caminhava pelas ruas com um semblante carrancudo. De qualquer forma, não estava contente com o rumo que a vida estava tomando. Sob seu ponto de vista tinha um filho covarde e uma filha degenerada. Dois inúteis e um deles já não lhe serviria para mais nada, uma vez que havia partido.

Ele encontrava um conhecido ou outro pelo caminho, às vezes parava para conversar e notou que todos o olhavam diferente. Havia muitos burburinhos em torno do ocorrido com Selena. Uma cidade pequena, onde a maioria é conservadora, a situação é vista com maus olhos. Isso começou a incomodá-lo ainda mais, afinal antes eram só fofocas e suposições e agora ele tinha certeza do que as más línguas diziam a verdade.

Dona Nina saiu de casa logo após seu marido. Era um comportamento atípico dela, não gostava de sair de sua residência. Preferia estar sempre protegida pelas muralhas de seu lar. Naquele momento, já não sabia mais o que poderia considerar um lar de verdade.

Ela tinha ainda esperanças de poder encontrar Raven, tinha fé que ele poderia ainda não ter abandonado a cidade. Conversou com várias pessoas que poderiam conhecê-lo, pedia informações a desconhecidos. Chegou a chorar e desabafar todo seu sofrimento à mãe de Tomás que estava no centro da cidade. A mãe de Tomás aprovava a ideia do jovem de tentar uma vida melhor e o apoiou em todas as etapas do processo de partida do rapaz. A mulher tentava consolar dona Nina e mostrar à ela que poderia ter sido uma boa escolha.

Após perceber que não haveria mais jeito, a mãe de Selena e Raven voltou para casa ainda mais desolada, não teria mais jeito.

Naquele mesmo dia, Dogan sequer apareceu em casa. Ficou o dia todo na rua batendo perna, conversando com muitas pessoas e tentando analisar uma saída para sua vida. Percebeu que não tinha mais a capacidade de mudar o ritmo de seu momento que não fosse tirando a sorte grande na roda de apostas. O jeito seria jogar e apostar em ideias que já tinham sido propostas a ele em rodadas anteriores e ele as rejeitou. Ele estava disposto a aceitar e, se vencesse, teria uma enorme quantia para receber, poderia repor tudo que havia perdido ao longo do tempo.

O crepúsculo mal havia chegado e todos já estavam lá reunidos na taberna, bebiam, conversavam e riam. A mesma escória de todos os dias.

- Boa noite, meus amigos! - Dogan aproximou-se deles com um largo sorriso no rosto, como sempre. Tentava não transparecer seu desapontamento.

- Sente-se, meu amigo. - Um dos frequentadores o saudou. Já estava levemente embriagado e tinha uma jovem seminua sentada em seu colo. – Estávamos à sua espera para começarmos a jogatina. Sem você não há diversão.

Klaus que era um jogador cativo riu caçoísta da fala do companheiro. Entendia muito bem qual era a diversão; depenar o idiota que insistia em perder seu tempo e seus bens ali. - O que tem para apostar hoje? - Inquiriu depois de uma golada de vinho. - Sabemos bem que seu último porco virou um belo assado na residência de nosso companheiro aqui. - Apontou o homem com a mulher no colo.

- Bem, na verdade, eu não tenho mais porcos.

- Vai nos dizer que vai ofertar aquelas hortaliças sem graça outra vez? - O homem dispensou a mulher que ostentava no colo.

- Bem, eu não tenho muito mais a oferecer. Meu maior bem agora é minha residência. - Quase gaguejou ao terminar a frase.

- Ótimo! - O homem concordou. - Então hoje a aposta será grandiosa.

- Não sei se é uma boa opção... - Dogan estava temeroso. - Se perdesse, estaria sem um teto. - Nós podemos negociar.

- Eu não quero mais aquele montante de hortaliças, a não ser que tenha conseguido mais porcos, aí podemos conversar.

- Eu não os tenho, infelizmente... - Baixou a cabeça.

- Pois muito bem, ou aposta sua casa ou deixa este grupo definitivamente. Esta é a regra. - O homem fora incisivo.

- Eu...

- É pegar ou largar!

Dogan encarou em silêncio os cerca de dez homens que estavam ali. Todos esperavam por um parecer definitivo dele. Havia um medo colossal tomar conta de seu âmago, contudo sentia que não poderia sair dali com o rabo entre as pernas, pensava que pudesse ser até uma questão de honra. - Tudo bem, eu aceito. - falou num fio de voz.

- Muito bem! - Houve comemoração na mesa. Contudo, apenas sete dos dez homens resolveram participar da jogatina pois havia apostas muito altas, talvez as mais altas de todos os tempos. - Vejo que há alguns frangotes aqui. - O homem zombou. - Ainda bem que é um homem de verdade, Dogan.

Logo a partida começou, havia nervosismo entre alguns participantes e um deles era Dogan. Ele chegava a suar frio. Em alguns momentos, ficava em vantagem nas jogadas, chegando a esboçar um riso de contentamento. Acreditava que depois de tantos dissabores e chegar ao fundo do poço, finalmente seu momento havia chegado, começou a ficar bastante confiante na vitória. A partida foi a mais longa de todos os tempos, pois havia muita concentração no jogo, o medo era a mola que movia os pensamentos daquela noite.

Após muita tensão, finalmente surgiu um vencedor na partida e não era Dogan. Klaus era o vencedor daquela noite. O pai de Selena estava desolado, seu corpo todo tiritava, aquele sem dúvidas, era o fim da linha. Havia jogado toda sua vida na lama.

Enorme falatório, comemoração de Klaus e seus conluiados. Reclamações corriqueiras dos perdedores, mas não tinha como contestar a escolha de Dogan. Alguns perdedores entregavam a ele sacos de moedas, joias de estimação ou até de origem duvidosa, fato era que Klaus estava mais rico do que já era. Restava somente o último apostador a cumprir sua parte; Dogan.

- Muito bem, Dogan. - Klaus começou. - Sabe bem que aqui estamos entre amigos e em nome dessa amizade, todos devem cumprir com o combinado. - Apesar da frase, o tom era deveras ameaçador.

- S... Sim, claro. - Engoliu em seco.

- Você apostou sua residência e me deve uma residência.

- Claro, claro... - Ele suava até mesmo nas palmas das mãos.

- Contudo, acho que aquela sua casa é uma porcaria. - Klaus emendou. - Vou ter muito prejuízo para manter aquilo. Tenho uma enorme fortaleza, não preciso daquele lixo, porém uma aposta é uma aposta e você me deve algo.

- Mas, senhor... Eu ... Eu não tenho mais nada de mesmo valor.

- Talvez sim, talvez não.

- Não estou entendendo.

- Você tem uma filha, não é mesmo? Aliás, uma bela moça.

- Sim, mas o que quer dizer com isso?

- Troco a casa por sua filha.

- O quê?!

Naquele instante houve um enorme falatório entre os participantes. Os outros membros que não quiseram cobrir as apostas chegaram a comentar que deveriam ter participado se soubessem que a moça era um dos prêmios.

- Ei, Klaus! Assim não vale, sabe bem que eu ia fazer esta proposta no próximo encontro. - O outro protestou.

- Eu resolvi me adiantar. Deixe a casa para a próxima, como eu disse não tenho interesse naquela porcaria. - Encarou Dogan novamente. - O que me diz?

Seu olhar estava perdido, não conseguia raciocinar direito, porém havia honra em jogo ali. Além do perigo de não se cumprir com um combinado. Alguns apostadores já tinham perdido suas vidas pelo fato de não cumprirem sua parte.

- Está bem. - Concordou quase num lamento.

- Ótimo! - Concluiu Klaus. - Você tem três dias para me entregar meu prêmio.

Dogan saiu dali completamente abalado, apesar de tudo era sua filha. Ao mesmo tempo, tentou encontrar uma desculpa para si mesmo, acreditando que talvez fosse o melhor, afinal, Selena estava mal falada nas redondezas e com isso dificilmente conseguiria um bom casamento para a moça. Ao menos, seria uma boca a menos para alimentar e ainda teria sua casa.

O seu maior problema seria como ia contar a sua mulher e filha, a besteira que acabava de fazer. Cogitava nem voltar para casa naquela noite e assim o fez. Acabou dormindo na calçada da própria taberna.

Pela manhã, os raios de sol começaram a castigar sua visão. Ergueu seu corpo do chão duro, estava com suas roupas todas sujas, era visão da derrota. Respirou fundo e rumou para sua casa, teria que enfrentar a situação, não tinha como fugir. Notou os olhares de reprovação que recebia ao longo da estrada que percorria, já não sabia mais como retomar a dignidade que um dia possuiu. Agora, para completar, ia entregar sua filha como uma mera mercadoria para um homem desconhecido, pertencente a uma escória a qual ele já fazia parte. Um homem mal visto pela sociedade, de caráter duvidoso. Era ainda pior do que a fama que a garota estava carregando naquele momento. Todavia, ele estava decidido, não ia voltar atrás, ia entregar Selena para Klaus.

Ao aproximar-se de sua casa, notou que a jovem carregava um punhado de lenha para dentro de casa. Parou por alguns instantes, contemplou sua casa e notou que ela era só ruína, mal havia se dado conta que tinha chegado a tal ponto. A vida que proporcionava a sua família era realmente deplorável, meneou a cabeça negativamente em lamento. Inalou o ar fresco daquela manhã e prosseguiu, tinha a mais árdua tarefa de sua vida para realizar.

- NÃO!!! - O grito de dona Nina ecoou dentro daquela casa. - O que você fez? Trocou Selena como mercadoria?

A jovem estava tão perplexa que não conseguiu esboçar nenhuma reação. Não conseguia compreender a magnitude da situação surreal. Apenas jogou seu corpo em uma cadeira velha e mofada que estava próxima a ela. Sua pele, que já era clara, tornou-se ainda mais cândida. Nem mesmo uma lágrima brotou em seus olhos, não sabia o que pensar.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022