Eu me apaixonei por ela por tudo que ela era e eu não tinha, por tudo que ela representava, pelo modo como se movia no mundo e parecia não se preocupar com nada - ela era tão silvestre, como um animal selvagem que não pode nem deve ser domesticado. Sua natureza era e sempre foi e sempre será: ser livre. Ela não pertencia a nada e a ninguém, vivia um dia de cada vez e se deleitava com os prazeres mais simples da vida – como boa taurina, ela gostava de comer, transar, estar entre amigos. Cantarolava de vez em quando. Sorria sempre.
Ela não sabia o que queria fazer da vida, estudava engenharia ambiental, mas pensava em mudar pra gastronomia, ao mesmo tempo queria viajar o Brasil pegando carona, parando em praias, chapadas e comunidades alternativas. Ela não precisava de luxo e só usava roupa de brechó. Onde ela ia todo mundo se encantava por ela, era desse tipo de gente que ilumina por onde passa, que conversa com todo mundo, que contagia com seu riso fácil.
Naquela época, eu ainda me preocupava tanto com a aprovação dos outros, ainda tentava provar tanto de mim, provar minha beleza, inteligência, eficiência, queria tanto ser
vista, reconhecida, aceita, e isso era um desgaste, era uma peleja inútil e vã, de que adiantava provar qualquer coisa pros outros se eu ainda duvidava do meu valor, se no fundo eu era minha maior crítica e minha maior carrasca?
Admirava como ela não tentava nada – ela só era. E isso que ela era... era uma coisa relaxada, preguiçosa, fluida, ela parecia não ter meta na vida, era como um rio, como águas que correm sem saber pra onde, só correm. Ao mesmo tempo ela era tão... terrena. Tinha as cores e a corpulência da terra, curvas de musa renascentista, seios fartos, ventre redondo, pele morena, longos cabelos castanhos, e se vestia quase sempre com tons de verdes e marrom.
A primeira vez que a vi foi num luau em Pirangi, uma praia de veraneio na esquina do Nordeste, tinha gente cantando e tocando, tinha música e festa, ela estava dançando de saia rodada e pés descalços sob a luz das estrelas e da lua crescente que sorria pra nós, algo em mim, na minha fome, se retorceu – era desejo, mas era também identificação. A mulher selvagem dentro de mim reconheceu a mulher selvagem dentro dela.
Naquela época eu estava começando a descobrir a potência mais profunda e primitiva da dança. Eu, que fiz anos de balé pra remediar os pés tortos, que fiz dança contemporânea na faculdade porque sempre amei dançar, mas que na verdade não me sentia boa o suficiente, que culpava meus pés pelo meu desequilíbrio na vida... estava descobrindo algo completamente novo: o transe. Um grande amigo meu, um dos melhores bailarinos que conheço, havia me dito um dia: dança não é técnica, é estado.
Suas palavras ressoaram dentro do meu peito. Eu estava começando a compreender toda a verdade disso, estudando dança do ventre e sentindo a serpente que me habita, indo pra raves e dançando por horas e horas de olhos fechados e pés descalços numa comunhão tão profunda com a terra e com meu próprio corpo que às vezes parecia um gozo. Não parecia, era. Quando conseguimos transar com a dança a ponto de se fundir com ela, de não ser mais a dançarina, mas a própria dança, sem ego, sem noção de tempo, sem medo do julgamento, sem se importar com o olhar dos outros... dançar é um gozo. Uma coisa eu aprendi nessa época: quem passa pela vida sem dançar está perdendo uma das maiores graças de estar vivo.
E assim estávamos quando nos conhecemos: dançando. Os meus movimentos eram sinuosos e ondulantes, toda ninfa, serpente, odalisca da praia, os dela eram fortes e possessos, toda índia, xamã, bruxa em transe, ela batia os pés no chão como se quisesse acordar a terra - e acordou.
Um amigo nos apresentou, a gente bebeu vinho e dançou juntas, uma dança estranha e sensual, da dança brotou um beijo e isso me embriagou mais do que todo o resto. A gente encaixou as pernas num nó e esfregamos as bucetas uma na coxa da outra - a força da gravidade dela me puxava pra baixo, pra lava do centro da terra, pra lava de dentro da buceta, e só de roçar nela eu já tava quente, a ponto de ebulição. Mas o que me fez tremer na base foi quando ela sussurrou no meu ouvido: corre comigo.
Escutei seu chamado. Ela me pegou pela mão e a gente correu pro lado escuro da praia, pra trás das pedras e coqueiros, ali estendemos nossas cangas e nos deitamos sob a luz cintilante das estrelas, rindo e se beijando. Ela parecia tão mais confortável que eu, tão mais experiente, confessei: não sei o que fazer. Ela deslizou a mão até minha buceta, enfiou dois dedos dentro de mim com maestria e disse: me mostra tua força. Não entendi com o pensamento, mas entendi com o corpo – levei meu dedo até o clitóris e enquanto ela manejava os dedos na minha buceta expliquei pra ela como gostava e onde era meu ponto g, ela aprendeu rápido e executou com perfeição, me mirando fixamente.
Fui encharcando, a maré foi enchendo, a gente riu do som das ondas misturado com os sons da buceta molhada, e eu, que sempre gozo de olhos fechados, gozei de olhos abertos com seu olhar penetrando o meu e as estrelas pipocando na periferia do meu olhar. No ápice do gozo, ancorada no seu olhar negro e profundo, meu gemido foi um uivo; no corpo, uma energia selvagem chacoalhou pra fora da minha pele os medos, receios, nóias, quando parei de tremer fechei os olhos por um segundo, não escutei nada além do vento, do mar e do meu coração batendo forte no peito, e nessa escuridão e nesse quase silêncio me veio uma clareza, uma lucidez intensa: senti meu corpo forte, bonito, senti minha coragem de viver, de aprender, de me arriscar, entendi e acolhi minha necessidade de aprovação, sim, eu quero ser amada e tá tudo bem, mas não preciso fazer tanto esforço. Eu sou digna de amor. Meu corpo, até o que é torto, é digno de amor. Entendi que a dança e o orgasmo me ensinam a mesma coisa: estar viva é bom quando a gente não pensa demais.
Abri os olhos me sentindo agradecida, querendo agradecer.
Ela estava sorrindo um sorriso plácido, quase como uma santa, iluminada pela meia luz da lua. Com meus olhos de clareza eu vi que: aquilo que admirava nela... já tinha dentro de mim.