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Índio(Marcos) 30 anos.
Passei por muita coisa pra chegar onde estou hoje, mas vou te falar: ninguém sonha em ser dono de uma favela. Quando a gente é criança, os sonhos são outros. A gente imagina, cria esperança, mas depois vê tudo se perder quando a realidade te engole. Entrei nessa vida não porque quis, mas porque não tinha escolha.
Meu pai era um homem bom, ou pelo menos é o que eu achava. Um dia ele foi embora, largou tudo pra trás, me deixou com a minha mãe e nunca mais voltou. E o motivo? Mulher. Ele destruiu o que chamávamos de família, e isso acabou com a cabeça dela. Minha mãe não conseguiu lidar. Ela se perdeu nas drogas, começou a sumir por dias, até que não voltava mais pra casa. Ficava na cracolândia, e por mais que meus tios tentassem resgatá-la, nunca durava muito. Era sempre a mesma coisa.
Por causa disso, fui obrigado a crescer rápido. Larguei a escola cedo porque alguém tinha que colocar comida na mesa, e essa responsabilidade caiu nas minhas costas. Alguns parentes tentaram me ajudar, mas a maioria já estava envolvida com coisa errada ou não tinha condições de sustentar mais uma boca. Na favela, quando você cruza com certas pessoas, não demora muito pra você ser puxado pra dentro.
Foi nessa época que conheci o homem que me adotou. Ele era o dono do morro, mas, pra mim, foi mais que isso. Foi o pai que eu nunca tive. Me deu casa, comida e me tirou daquela vida de fome e abandono. Minha mãe ficou aliviada em me deixar com ele, até porque já tinha gente do Conselho Tutelar atrás dela por abandono de incapaz. Eu sei que ela me amava, mas o amor também a destruiu.
Com ele, eu terminei a escola, fiz cursos e até tive a chance de sonhar de novo. Mas desde o começo ele me preparava pra ser o próximo a assumir o morro. Ele não tinha filhos, e eu era o herdeiro. A responsa era grande, porque aqui você não herda só poder, mas também inimigos. Aprendi cedo que confiança é algo raro. Conheço muita gente, mas amigos de verdade? Conto nos dedos de uma mão.
Quando assumi, fiz questão de mudar algumas coisas. Eu não aceito que menor entre nessa vida. Faço o que posso pra dar apoio às famílias da favela: cestas básicas, material escolar pras crianças, e até organizo bailes pra ajudar os moradores a ganhar um extra vendendo nas barraquinhas. Sei que a favela é um lugar abandonado pelo estado. O governo só lembra daqui quando quer entrar com caveirão e deixar bala perdida. Assistência de verdade, nunca vi.
O que mais me dói é ver as crianças perderem a infância. Vejo uns menor que, com 12 anos, já estão com uma arma na mão achando que são "os donos do mundo". Eles não entendem que essa vida é uma ilusão. No final, ou você morre, ou você morre. Cadeia não é vida, e mesmo lá dentro, você precisa ser peixe grande pra sobreviver.
A verdade é que o crime dá dinheiro, mas te tira o que é mais importante: a liberdade. O que adianta ter grana pra comprar um carro, se você não pode sair da favela? Você vive com um olho aberto e outro fechado, porque qualquer vacilo pode ser o último. Quem acha que essa vida é fácil não conhece a realidade. São muitos que tramam contra você, esperando uma brecha. Aqui, não existe "irmão".
O que mais me incomoda é ver os mais novos entrando nessa vida por vaidade. Querem roupa de marca, sensação de poder, chamar atenção das mulheres. Mas isso é uma ilusão. Só quem tem cargo alto ganha dinheiro de verdade. Aviãozinho, radinho, olheiro... esses moleques ganham nada e são os primeiros a morrer. É triste ver como o sistema engole essas crianças.
Eu sei que não sou santo. Fiz o que fiz pra sobreviver e porque não tive opção. Mas tento usar o que conquistei pra ajudar os outros. Eu faço pelo complexo o que o estado nunca fez. Sei que, no fundo, essa vida não leva ninguém a lugar nenhum. É um ciclo que destrói famílias, como destruiu a minha.
Minha mãe ainda está por aí, vagando, perdida. Mesmo com tudo o que aconteceu, eu a amo. Sempre amei. Mas a verdade é que o amor, às vezes, não é o suficiente. Ela foi vencida pela dor, pelo abandono, por tudo o que passou. E eu segui o caminho que me deram. Não porque quis, mas porque era o único que tinha.