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Índio.
Vagabundo acha que só porque eu sou dono da parada, eu tô dormindo no ponto, esperando alguém vir me passar a perna. Mas o que mais tem nesse meio é gente querendo te atrasar. Espero o pior até de quem eu fortaleço. Não conheço a mente de ninguém.
Levantei cedo como sempre. Aqui, a gente não dorme muito. Gosto de ver como anda o gerenciamento de perto. Se deixar tudo na mão dos outros, nego começa a se achar mais dono que eu. Monitoro tudo: dinheiro que entra e sai, quem tá devendo, quem tá se achando esperto demais. Quando posso, faço a ronda duas vezes no dia. Não posso vacilar. Olhos sempre abertos.
Me arrumei: Traje da Lacoste, cordão fininho de ouro, Kenner no pé. Desci, comi dois pães com ovo e café. Na favela, o dia começa cedo, mas quem manda no morro nunca pode começar o dia despreparado.
Fui direto pra boca principal ver o andamento das drogas. Passei a visão pros menor:
- Não deixa passar nada. Quem tiver devendo, pode cobrar.
O que mais me deixa puto é viciado que usa e não paga. Aqui tem só duas opções: paga ou morre. Simples. Se não tem dinheiro, então por que usou? Droga não é de graça.
Sentei no sofá da boca e acendi o primeiro baseado do dia. Diferente de muito doido por aí, eu sou tranquilo. Não deixo droga me controlar. Já vi nego se perder no vício e acabar na vala. Aprendi cedo que quem não domina a mente, morre rápido nesse jogo.
Tava marolando, ouvindo um som, quando a porra do Elias Maluco me acionou pra encontrar com ele na entrada do morro. Já subi na moto bolado. Esse maluco só me chama pra problema.
Cheguei na entrada e lá estava ele, rindo com os caras. Parei a moto do lado dele mas a vontade era de passar por cima, cruzei os braços e já fui seco:
- Me chamou aqui pra quê? Espero que não tenha sido pra ouvir tuas gracinhas.
Ele riu, debochado.
- Já tá boladinho, amor?
Os outros caíram na gargalhada. Não sei que intimidade é essa, parceiro.
- Deixa ele, Índio. Tá precisando levar um pau pra aprender. - Jota provocou.
Elias soltou uma voz fina:
- Ai, se for seu pau, eu quero!
- Jota, pega uma madeira ali. - Falei seco. - Vou quebrar essa porra agora.
Os menor já botaram pilha, rindo da cena. Moleque viado, me fez perder tempo pra ouvir essas merdas.
Fiquei ali de canto, só observando. Foi quando vi um carro preto parando do outro lado da rua. Uber. Saiu uma preta linda de dentro. Peguei a visão de longe. Tava atrás de moto táxi.
Poderia dar carona, mas só passei a visão pros caras ficarem atentos e segui meu caminho. Hoje queria almoçar na Dona Lúcia. A comida dela é braba.
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Às vezes, me passa um filme na cabeça. Sempre fui um moleque sonhador, e é isso que me mantém de pé.
"O sistema limita nossa vida de tal forma que, uma hora, a gente tem que escolher: sonhar ou sobreviver."
Muitos entram no crime sem nem saber como funciona. Os menor que pegam um fuzil muitas vezes nem sabem travar ou destravar a arma. Já vi nego morrer porque não sabia desmontar e limpar a peça. Mas tem os que aprendem rápido.
O que ninguém fala é que muito bandido que tá no tráfico já passou pelo Exército. Os caras pegam experiência, dão baixa e voltam pro crime. Eles ensinam os menor que não sabem, e aí que o bagulho fica sério.
O crime tem hierarquia, como no Exército. Patentes, comando, disciplina. Só que, diferente dos milico, aqui a lei é outra.
O Rio tá em guerra há anos. Mas ninguém se importa de verdade. A mídia só vende desgraça. O governo finge que quer acabar com o tráfico, mas no fundo, o crime e o governo andam juntos. Porque há anos vivemos essas guerras entre facções, guerra entre o governo e o tráfico e uma guerra entre o governo e o governo.
O que mais me revolta é que nunca vai ter paz aqui, porque o próprio governo alimenta essa merda. Eles plantaram esse ódio dentro da gente.
Os de fora nunca vão entender. Pra eles, favelado é tudo igual. Mas esquecem que nós também sonhamos com uma vida melhor. Mas como, se ninguém dá oportunidade?
Se o cara nunca sentiu fome, como ele vai entender um moleque que entra pro tráfico só pra colocar comida na mesa?
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Voltei pro corre, já cobrando os devedores.
- João, até mais tarde quero meu dinheiro. Não vendo droga de graça.
Ele levantou as mãos, nervoso.
- Índio, tô ligado, pô. Foi só uma vacilada. Precisei comprar leite pro meu menor.
Fiquei observando ele.
- Sei. Só não vacila de novo.
Ele saiu aliviado. Peguei as notas, risquei o nome de quem pagou. Os que não pagaram já foram com Deus.
Saí da boca e fui no mercadinho. Bateu aquela larica, então comprei um salgadinho.
Abri o pacote e segui andando. Foi quando senti um corpo bater contra o meu.
Olhei pra frente e era ela.
A mesma mina da entrada. Agora, de perto, dava pra ver que era ainda mais gostosa.
Ela me olhou com marra.
- Desculpa, não te vi.
Observei ela de cima a baixo. Atrevida.
Não falei nada. Só segui meu caminho.
Se fosse outro dia, e eu estivesse bolado, ela ia ver só. Marra demais, do jeito que eu gosto. Dessas que a gente quebra a pose só na pica.
Mas hoje eu tava de boa.