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Lorena.
Sou extremamente vaidosa. Gosto de estar bem arrumada, fazer as unhas toda semana, andar cheirosa e maquiada.
Me arrumo pra mim mesma, não para os outros. Tenho que cuidar da grande gostosa que sou. Agradeço a Deus e aos meus pais por esculpirem essa obra-prima.
Enquanto escolho minha roupa para o dia, vejo pela janela a chuva castigando a cidade. No noticiário, as imagens me apertam o peito: ruas alagadas, casas destruídas, famílias carregando móveis ensopados, crianças chorando no colo das mães. Dói ver tudo isso e saber que, no fim, pouca coisa vai mudar. O governo só aparece depois que a tragédia já aconteceu. E quem perdeu tudo? Fica no prejuízo e pronto.
Respiro fundo. Queria fazer algo, mas como se luta contra a natureza? O máximo que posso fazer é ajudar do jeito que dá e pedir a Deus que proteja os nossos.
Hoje decidi que, depois do trabalho, vou visitar minha mãe no morro. Ela ainda faz faxinas, mesmo sem precisar. Quando falo pra ela parar, ela solta: "Minha filha, isso é pra pagar meu litrão e meu cigarro." E eu só dou risada, porque sei que ninguém manda nela.
Minha marca ainda não tem loja física, então administro tudo do meu escritório e das vendas online. Faço questão de monitorar a fabricação, testando cada creme no meu próprio cabelo antes de aprovar qualquer coisa. No começo foi difícil, mas hoje vivo do jeito que sempre quis, sem depender de ninguém.
Na empresa, a Érika entra na minha sala, segurando algumas embalagens.
- Bom dia, Dona Lorena. Tem uns produtos pra você testar.
- Bom dia, Érika. Manda entregar na minha casa. São os de nutrição, né?
- Sim. E sobre a promoção do Dia dos Namorados, tá indo muito bem!
- Ótimo. Minhas Badgalls têm que ficar maravilhosas!
Hoje também é dia de lançamento da nova linha, inspirada na Amazônia. Vivi essa experiência e foi transformador. Quero que cada pessoa que usar esses produtos sinta essa conexão com a natureza.
Depois do trabalho, fui ao shopping comer um lanche e procurar um macacão novo.
Comprar roupas é minha terapia. Enquanto escolhia um salto alto, Max me ligou.
- Ainda bem que não precisou arrumar um sugar daddy pra bancar, hein! - Ele disse, rindo.
- Eu tenho cara de quem pega velho, viado?!
Ouço ele gritar no telefone, fazendo escândalo.
- Mona, você deveria usar essa beleza pra fazer dinheiro! Ia chover de velho na sua horta.
- Graças a Deus sou dona do meu negócio. Não nasci pra ser puta.
- Não desmerece o trabalho das guerreiras, hein!
- Nada contra! Sou a favor das contas pagas.
Rimos juntos. Depois, desliguei e terminei minhas compras. Agora era hora de subir o morro.
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O Uber parou antes da subida. Carro preto, vidro fumê. Não podia ser diferente, os olhares vieram na hora. Os homens armados pararam de conversar e me encararam.
Respirei fundo. Droga, não vi as armas antes. Só queria dar meia-volta, mas não podia recuar agora. Fui em direção ao grupo, achando que era um ponto de moto táxi.
Um deles se afastou da moto e falou, a voz grave e carregada de autoridade:
- Tá perdida, boneca?
Olhei pra ele. Alto, pele bronzeada, traços indígenas. Se não for índio, pelo menos é descendente. E por sinal, muito gostoso.
- Não... achei que fosse um ponto de moto táxi. Desculpa.
Outro cara, mais novo, riu.
- Nós não é moto táxi não, delícia.
O primeiro ignorou a provocação e virou para os outros.
- Rapaziada, tô subindo. Fiquem atentos no corre.
Quando ele ia saindo, um branquinho encostou com uma moto do meu lado.
- Te levo lá. Sobe aí.
Agradeci a Deus. Melhor sair dali rápido. Ele me entregou um capacete e subi sem pensar duas vezes.
- Valeu mesmo, hein...? - Dei uma pausa, esperando ele dizer o nome.
- Elias. Mas pode me chamar de Elias Maluco.
Dei risada. O vulgo combinava com a energia dele.
- Então, Elias Maluco, me leva na rua 9, por favor.
Fomos conversando no caminho, e percebi que ele era engraçado.
- Tu é solteiro? - perguntei, mais por curiosidade do que interesse. - Porque algumas mulheres ficaram me olhando feio quando passamos.
Ele riu, sem tirar os olhos da rua.
- Sou. Elas perdem a calcinha quando o trem passa.
Soltei uma risada escandalosa. Esse cara era abusado.
Na porta de casa, tentei pagar pela corrida, mas ele recusou.
- Passa só o seu número, então. Quando precisar de um moto táxi de graça, aciona.
Ri da cara de pau, mas passei mesmo assim. Simpatizei com ele. Salvei como "Elias Maluco", e ele salvou o meu como "Gallore''. Lorena Maria é muito formal, só quem é íntimo me chama assim.
Ao entrar em casa, minha mãe estava largada no sofá, vendo novela.
- Vida gostosa, né, Dona Vânia?
Ela se assustou.
- Que susto, assombração! O que você quer, Lorena Maria?
- Já que perguntou... um bolo de chocolate bem recheado.
Ela bufou, mas já sabia que ia acabar fazendo.
- Vai buscar cerveja pra mim que eu faço.
Peguei minha carteira e saí antes que ela mudasse de ideia.
No mercadinho, dei de cara com o mesmo homem da entrada do morro.
Esbarrei nele, sem querer.
Era ainda mais imponente de perto.
- Desculpa, não te vi.
Ele me olhou de cima a baixo, sem dizer nada.
Olhar sério, expressão fechada.
Porra, Lorena. Deixa de ser atrapalhada.
Segui andando, xingando a mim mesma mentalmente.
De volta em casa, o cheiro de bolo já tomava conta do ambiente. Mandei mensagem pro Max, chamando ele. Minutos depois, ele chegou fazendo a egípcia.
- Que cheirinho de bolo...
- Não finge, mona. Você veio só por isso.
Minha mãe riu.
- Vocês quando se juntam, misericórdia!
Passamos o resto do dia ali, bebendo e conversando sobre tudo. O Max, como sempre, fofocando e contado da vida dos outros.
Depois de um tempo, decidi ir embora antes que ficasse tarde.
Mas a imagem daquele homem do mercadinho ainda não saía da minha cabeça.