Capítulo 3 Lucius

Eu estava ali, naquele momento de calma rara. O riso flutuava no ar, como se o tempo tivesse desacelerado para permitir que aquele instante de felicidade fosse vivido intensamente. Mas, como sempre acontece, a paz não durou muito.

Algo me fez olhar para a distância, e ali, no limite da visão, entre as árvores e a névoa suave, havia uma figura. Um homem. Alto, imponente, sua presença parecia pesar o ar ao redor dele. Seus cabelos longos caíam pelas costas, presos em um ramo de cavalo, o tom deles... um loiro quase branco, brilhando como se a luz tivesse sido absorvida pelo próprio fio de cabelo. Não conseguia desviar o olhar, como se algo em sua aparência fosse me puxar para um lugar que eu não queria ir.

Seus olhos, castanhos e profundos como a terra, pareciam guardar segredos sombrios. Era como se ele soubesse coisas que ninguém mais sabia. E então, eu vi. A cicatriz. Um corte que ia do olho esquerdo até a bochecha, um remanescente de um passado violento. Era como se aquele rosto tivesse sido marcado pela dor, pela guerra. Mas o que mais me inquietava era o peso no olhar dele. Uma preocupação silenciosa, como se ele estivesse à beira de tomar uma decisão difícil.

Ele caminhava em nossa direção com passos firmes, e, à medida que se aproximava, meu coração acelerava, um pressentimento se formando dentro de mim. Quando chegou perto o suficiente para que todos pudéssemos sentir a tensão no ar, ele não olhou para mim, mas fixou seus olhos diretamente em Gabriel. E então, em um tom baixo, quase carregado de raiva reprimida, ele falou:

- O que você está fazendo aqui? Você sabe que é proibido entrar aqui.

Eu não sabia o que era mais perturbador: o fato de ele saber de Gabriel, ou o modo como parecia que ele estava falando para alguém que já deveria estar ciente de algo, de uma regra quebrada. Aquele homem, com toda a sua força e sua cicatriz, parecia carregar mais segredos do que eu jamais poderia imaginar. Algo me dizia que ele não era apenas uma ameaça para Gabriel, mas para todos nós.

E enquanto ele falava, uma sensação de frio percorreu minha espinha. Eu não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas sentia que aquele momento feliz estava prestes a se desintegrar diante dos meus olhos. Como se ele fosse o catalisador de algo muito maior, mais obscuro, algo que eu nem começava a entender.

O homem não desviava os olhos de Gabriel, mas, de repente, ele virou lentamente o rosto para mim. Seus olhos castanhos, profundos como um abismo, focaram em mim com a intensidade de alguém que não estava simplesmente me vendo, mas me avaliando, me observando como se procurasse algo que eu mesma ainda não sabia que possuía.

- Meu nome é Lúcius - ele disse, com uma voz firme, quase cortante. Não parecia um nome comum, mas algo... mais sombrio. Eu senti como se o nome ressoasse naquelas palavras, ecoando em um canto distante da minha mente.

Antes que eu pudesse responder ou sequer reagir, Gabriel olhou para Lúcius com uma expressão sombria. Ele engoliu em seco, e eu ouvi as palavras que saíram da boca dele, como se tivessem sido forjadas na memória e no medo.

- Ela lembrou.

Aquelas palavras cortaram o ar. O silêncio que se seguiu foi pesado, denso, como se toda a cena tivesse se congelado. Lúcius, que até então se mantinha calmo, agora se contorcia em uma fúria visível. Seus olhos se arregalaram, e ele deu um passo ameaçador na direção de Gabriel.

- Você realmente contou a verdade para ela? - A voz dele tremeu com raiva. - Você contou sobre o que eu fiz? Sobre a irmã dela? Ela se lembra de tudo, ou você fez ela lembrar só de você?

A indignação na voz dele era palpável, como se ele não suportasse sequer a ideia de que algo tivesse sido revelado, de que eu pudesse ter descoberto algo além do que ele desejava que eu soubesse.

Antes que qualquer um pudesse responder, Lúcius avançou com rapidez. Sua mão, fria e autoritária, tocou meu braço, e naquele instante, o mundo à minha volta começou a se desintegrar. A luz que antes me cercava foi engolida pela escuridão, e uma sensação de vertigem me envolveu. O ar se tornou denso, e tudo ao redor parecia estar se apagando, como se eu estivesse sendo puxada para um lugar que não fazia sentido algum. O quarto se desfez diante de meus olhos, e, de repente, me vi de volta.

Só que, dessa vez, eu estava sozinha. Não havia ninguém ali. Nenhum som, nenhuma explicação, apenas a sensação de um vazio perturbador preenchendo cada canto da sala. O que eu havia visto... O que eu havia sentido... era real? Ou era apenas parte de um jogo de mentiras e manipulação?

Eu estava confusa, mais perdida do que nunca, como se cada pedaço da verdade que eu começava a entender fosse empurrado para longe, mais profundo, mais inatingível. Eu não sabia o que pensar, nem o que fazer com o que tinha acabado de vivenciar. O que Lúcius queria de mim? O que Gabriel tinha me escondido? E o mais importante: quem eu realmente era?

Eu estava sozinha. E isso nunca parecia tão assustador.

A voz não parava de ressoar em minha cabeça, e eu não conseguia mais distinguir entre o que era real e o que era apenas uma sombra de delírio. Era como se alguém estivesse ali, falando diretamente para mim, empurrando-me para uma verdade que eu ainda não conseguia entender. Sozinha... você nunca esteve sozinha.

Eu fechei os olhos, tentando bloquear aquilo, mas a voz só ficou mais forte, mais urgente. Para prevenção, em quantas vezes você ouviu que era para fazer algo que você nunca imaginou que faria?

Eu estava perdendo o controle. A ideia de estar ficando louca tomou conta de mim, uma sensação aterradora que não conseguia afastar. Era como se meu corpo e minha mente estivessem em desacordo, e eu não conseguisse mais confiar em nada, nem em mim mesma.

Eu me levantei, sentindo um impulso de procurar alguma coisa, qualquer coisa que me ancorasse na realidade. Me arrastei até o banheiro, com os passos pesados, meus olhos vidrados no espelho à minha frente. Eu precisava ver algo familiar, algo que me lembrasse quem eu era, onde estava. Quando olhei para o reflexo, o que vi não era eu. Era uma menina, com o cabelo longo e escuro, caindo sobre os ombros, e os olhos... eram de um tom cinza brilhante que eu nunca tinha visto antes. Ela não era uma estranha, mas também não era eu.

Pisquei, uma, duas, três vezes. Mas ela não desapareceu. A figura no espelho permaneceu ali, tão real quanto eu, e o que me causou um frio ainda maior foi quando ela falou.

- Eu sou você.

Eu congelei. Como assim? Eu era eu. Quem era ela? Quem era nós?

A menina no espelho sorriu suavemente, e suas palavras se enfiaram em minha mente com uma clareza cortante:

- Eu sou seu irmão.

A palavra "irmão" reverberou em minha cabeça, e de repente, flashes começaram a me invadir. Memórias distorcidas, como se estivessem sendo empurradas de volta à superfície, mas com tanta força que eu mal conseguia processar. Lá estava eu, ainda pequena, brincando em um lugar nebuloso, uma paisagem que parecia flutuar entre a névoa e as estrelas. Eu e ela, ou... nós, corríamos pelo que parecia um campo de nuvens, nossas risadas ecoando em um lugar onde o tempo não existia. E então, de repente, outra imagem: uma mulher. Eu a vi pela primeira vez em minha vida, mas sabia que era minha mãe. Sua pele era pálida, quase translúcida, e seu cabelo branco, muito longo, caía como uma cortina sobre ela. Suas orelhas eram alongadas, pontiagudas, e seus olhos eram de um cinza cintilante, como se carregassem uma luz interna. Ela usava algo na cabeça, como uma coroa feita de fios de prata, que reluziam sob a luz de um sol distante, algo que eu nunca havia visto antes.

As memórias me invadiram com uma força avassaladora, e então, as lágrimas começaram a cair. Eu não entendia o que estava acontecendo. Tudo o que eu sabia era que aquela mulher era minha mãe, e aquela menina no espelho... era minha irmã.

E, então, foi como se tudo se rompesse. Eu gritei, desesperada, chorando sem parar:

- Pai! Onde você está? Pai, por favor, me ouça!

Eu sabia, de alguma forma, que ele tinha as respostas. Ele sempre soubera, mas nunca me contou. Eu precisava saber a verdade, finalmente. Não podia continuar vivendo com essa sensação de que estava presa em uma mentira.

Minutos depois, ele apareceu. Seu rosto, normalmente calmo e sereno, estava contorcido em uma expressão de preocupação. Ele parecia saber que esse momento havia chegado, mas não queria enfrentá-lo.

Eu não sabia o que mais me incomodava: as revelações sobre minha mãe e minha origem, ou o fato de que ele nunca havia me contado nada. A confusão me consumia.

- Pai, quem era ela? Quem somos nós? – a pergunta escapou de mim, forçada pela dor e pela raiva.

Ele me olhou, hesitando, antes de dar um passo em minha direção. O olhar dele, cheio de arrependimento, me fez perceber que ele não tinha mais como esconder a verdade. Mas a verdade, naquele momento, parecia mais cruel do que qualquer mentira.

- Eu... eu nunca quis que você soubesse dessa história assim. Sua mãe... ela não era deste mundo. Ela era... de uma raça diferente. Eu sou humano, Dara, mas ela... ela não era. O amor entre nós era proibido, e mesmo assim, ela foi a minha vida. Vocês, as duas, são frutos desse amor proibido. Filhas de uma profecia que diz que uma se fará duas, e uma de vocês padecerá no amor. Mas a chave para equilibrar tudo, para salvar o universo, está dentro de vocês.

Eu não conseguia entender. Tudo parecia tão distante, como se a verdade estivesse diante de mim, mas ao mesmo tempo fora de alcance. Um amor proibido. Uma profecia. E eu, perdida entre as peças desse quebra-cabeça. Eu precisava de respostas, e meu pai, o homem que sempre foi a minha âncora, não parecia saber mais o que fazer.

- A profecia... ela dizia que uma de vocês seria a chave para equilibrar tudo, que vocês teriam o poder de fazer o que fosse necessário para salvar o universo. Mas tudo o que eu sabia era que, quando sua mãe morreu, eu... eu sabia que a dor que viria seria muito grande. E quando vocês nasceram, sabia que a história delas, da mãe de vocês, seria marcada por sacrifícios. Não era só o amor proibido... era algo maior.

Eu me sentia perdida, sem chão. O homem que eu conhecia como meu pai acabava de me contar que minha origem era muito mais complexa e sombria do que eu imaginava. E Lúcius... não havia sequer uma palavra sobre ele. Mas algo me dizia que ele estava mais presente nessa história do que eu gostaria de admitir.

Eu estava tentando juntar os pedaços, mas a verdade estava tão distante quanto as estrelas, e meu coração já não sabia mais onde estava.

            
            

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