Engoli em seco enquanto meus pensamentos voltavam para o que tinha acontecido. Arrepios subiram pela minha pele, e eu tremi. O movimento aumentou a dor entre minhas pernas, outro lembrete dos horrores deste dia.
Existe alguma chance de gravidez?
A pergunta da médica passou pela minha mente. Mamãe ficou horrorizada, e eu também. Até aquele momento, eu nem tinha considerado que essa humilhação poderia levar a consequências futuras.
Estremeci de novo. Não consegui responder à pergunta. Eu não era idiota. Claro, eu sabia que a relação sexual sempre significava uma chance de concepção, mas as chances aumentariam drasticamente se Maximus...
Eu me impedi de seguir essa linha de pensamento.
Eu queria esquecer, fingir que nunca aconteceu.
Mamãe apertou minha mão ainda mais forte.
- Nós vamos superar isso. Não importa o que aconteça depois, nós vamos superar isso como uma família.
- Eu devia me casar em dois meses.
- Você ainda vai se casar... - Mamãe examinou meu rosto. Ninguém a imaginaria como uma mulher na faixa dos quarenta e poucos anos, mas ela parecia ter a idade que tinha hoje. Seu cabelo naturalmente loiro escuro quase não mostrava nenhum fio grisalho e, exceto por algumas linhas finas ao redor dos olhos de tanto sorrir, ela não tinha rugas. - A menos que você não queira.
Eu não tinha certeza do que queria. Mas se eu estivesse grávida do filho de Maximus, não poderia me casar com outro homem.
- Tenho certeza de que Paolo criará a criança com prazer como se fosse dele.
Às vezes era assustador o quão bem a mamãe conhecia minha linha de pensamento. Mordi o lábio, meus olhos queimando com uma nova onda de lágrimas. Paolo realmente iria querer isso? Eu iria?
- Eu não quero um filho de um ato como esse.
Mamãe engoliu em seco, então assentiu lentamente.
- Claro, eu entendo. Se você estiver grávida, nós lidaremos com isso.
Minha mãe não gostava de abortos, mas eu sabia que ela me apoiaria não importa o que eu decidisse. No fundo, eu sabia que ficaria com o bebê porque não tinha certeza se conseguiria viver com a culpa. Ao contrário de muitas outras meninas que enfrentaram a mesma decisão impossível, eu tinha apoio familiar e dinheiro suficientes.
- Vou ficar com ele se estiver grávida. Mas espero que não esteja.
Mamãe apertou minha mão de novo, mas não conversamos mais. Eu estava exausta, mental e fisicamente, de uma forma que nunca tinha experimentado. Meu corpo queria dormir, mas minha mente estava com medo das imagens que eu reviveria.
Quando chegamos em casa, senti uma sensação de segurança que não tinha até agora. Meu corpo doía levemente, mas os analgésicos começaram a fazer efeito. Normalmente, eu não tomaria remédios para o nível de desconforto que sentia entre as pernas, mas simplesmente não queria ser lembrada do que tinha acontecido a cada momento do dia. Não seria fácil esquecer, mas eu queria tentar.
- Deixei Inessa e Alea com Aria nos Hamptons para que você possa se recuperar em um ambiente tranquilo.
Mamãe queria meu bem, mas silêncio era a última coisa que eu queria agora. Eu temia as vozes que ouviria quando tudo ficasse quieto ao meu redor. Eu queria distração e normalidade. Eu queria ser a Sara dessa manhã, não aquela em que eu podia sentir que estava me transformando. Eu queria me aconchegar com um doce romance de cidade pequena, comer biscoitos caseiros e ouvir as brigas das minhas irmãs. Eu queria estar segura sabendo o que o meu futuro reservava.
- Ah, você quer que elas voltem para casa? - mamãe disse depois de olhar para o meu rosto. - Eu só pensei... - Ela soltou um suspiro trêmulo. - Eu realmente não pensei.
Eu só fiz o que achava que fosse melhor.
- Está tudo bem. Deixe-as ficar com a tia Aria esta noite. Já é tarde demais para elas voltarem para casa. Talvez seja melhor se eu tiver até amanhã para me recompor antes que elas me vejam. Não quero que elas fiquem preocupadas comigo. - Hesitei. - Elas sabem o que aconteceu?
- Não lhes dissemos muita coisa, apenas que você foi capturada, mas foi salva rapidamente.
Não rápido o suficiente. Minha barriga se contraiu. Saímos do carro. Dois guarda-costas nos seguiram. Fiquei feliz por não poder ler os pensamentos de ninguém. Suas expressões eram o suficiente para me fazer querer me esconder.
Já eram oito e meia, mas eu estava com medo de subir para o meu quarto sozinha, apesar da minha necessidade de tomar banho.
- Você pode vir comigo? Preciso tomar um banho... - Lágrimas brotaram dos meus olhos. Até mesmo nossa casa aconchegante, um lugar que sempre me fez sentir segura e feliz, só me fez perceber o quanto havia mudado desde esta manhã. Olhar para as muitas fotos de família em nossas paredes retratando uma Sara sorridente com olhos brilhantes e esperançosos era como um tapa.
Mamãe assentiu rapidamente, sua luta pela compostura tão clara quanto o dia em seu rosto.
Não desmoronei no chuveiro como temia. Senti-me estranhamente desligada de mim mesma, da situação... talvez fosse algo temporário, a maneira da minha mente me proteger.
Fiquei feliz pelo adiamento.
Depois do banho, mamãe e eu nos enrolamos no sofá da nossa sala de estar, cobertas com mantas de lã, e assistimos a um filme da Disney. Minha mente estava longe, mas ver as imagens coloridas passarem rapidamente era bom. Fiquei feliz que mamãe tivesse decidido contra nossa escolha habitual de um filme clichê e romântico da Hallmark. A mera ideia de ver as pessoas sendo românticas quando minhas chances de experimentar o mesmo eram nulas me fez recuar.
Meus olhos começaram a cair quando a fechadura abriu, e Flavio e papai voltaram para casa. Mamãe se sentou, e eu também. Papai e meu irmão pareciam exaustos e culpados. A culpa sempre estava envolvida para os homens da máfia quando suas garotas ou mulheres se machucavam.
- Não é culpa sua, Flavio, - eu disse firmemente antes que ele pudesse proferir um pedido de desculpas. - Eram muitos. Você sozinho não poderia ter feito nada diferente de... - Respirei fundo. - Maximus.
Dizer o nome dele exigiu esforço. Eu nem ousei pensar nele até esse ponto.
Suas sobrancelhas castanhas se juntaram, um músculo em sua mandíbula trabalhando enquanto ele processava minhas palavras.
- Não sabemos disso, e eu sempre vou me perguntar...
- Nós nos vingaremos. Luca deu a Flavio, Maximus e a
mim o sinal verde para concentrar nossos esforços em encontrar os culpados. Maddox também ajudará.
A surpresa me atingiu. A expressão do papai se tornou cautelosa e preocupada.
- Sara. Luca não vai punir Maximus. E eu escolhi não pedir a ele.
O rosto da mamãe se contorceu em descrença, e ela se sentou ereta no sofá.
- Você não pode estar falando sério! - Sua raiva por mim era boa, mesmo que eu não a compartilhasse. Eu não tinha certeza do que sentia por Maximus. Eu simplesmente não queria pensar nele de forma alguma.
- Você não assistiu ao vídeo, Lily, - papai implorou.
- Oh Deus, - sussurrei, percebendo o que isso significava. Papai e Flavio tinham assistido ao vídeo... Me levantei e corri escada acima. Tropeçando pela minha porta aberta, me joguei na minha cama. Eu tremia, e meus olhos queimaram ferozmente, mas as lágrimas não caíram. Eu sentia vontade de chorar, mas não conseguia. Sentia que poderia vomitar, no entanto.
Passos fez as tábuas do assoalho rangerem. Sabia que era papai sem olhar por cima do ombro. Ele cheirava como a loção pós-barba que eu associava a ele e um toque de pólvora.
O colchão afundou. - Sinto muito, Sara. Parte de mim quer matar Maximus, mas...
- Não é isso, - sussurrei. - Eu não queria que você assistisse.
Papai ficou em silêncio. Mesmo que eu não quisesse, olhei
para cima. Seu rosto estava cheio de angústia. Peguei sua mão apoiada em seu joelho.
- Você não deveria ser a única a me consolar, Sara. -
Ele envolveu seus dedos em volta da minha mão e apertou. - Esse é o meu trabalho.
Seu olhar suave estava preocupado, uma expressão típica de pai. Esperava uma expressão diferente depois que ele assistiu ao vídeo, mas ele ainda olhou para mim como sempre fez. Para ele, eu ainda era a Sara desta manhã, mas eu podia dizer que ela já tinha ido embora.
***
A conversa das minhas irmãs me acordou. Sentei-me lentamente na cama, estremecendo com a dor entre as pernas. Eu ainda me sentia lenta. A noite passada foi a primeira vez que tomei algo para me ajudar a dormir. Apesar de estar com medo de possíveis pesadelos, estava ainda mais desesperada para que o dia acabasse.
Os efeitos dos comprimidos para dormir ainda pareciam ter um efeito sobre meu corpo. Com uma respiração profunda, forcei-me a levantar. As manhãs significavam novos começos, uma chance para algo bom acontecer. Essa sempre foi uma crença firme minha, e eu não permitiria que nada mudasse isso.
Vesti-me com roupas confortáveis de dormir. Era fim de semana, então não tinha aula. Ainda assim, não conseguia me lembrar da última vez que dormi até quase meio-dia. Eu não era de ir a festas, então geralmente acordava cedo.
Depois da briga das minhas irmãs, saí do meu quarto e as encontrei no quarto de Inessa. Inessa tinha sete anos e Alea era nove anos mais nova que eu. Elas discutiam o tempo todo.
Eu me inclinei contra o batente da porta do quarto compartilhado delas e as observei enquanto discutiam sobre uma tiara quebrada. Ambas tinham herdado o cabelo loiro escuro da mamãe, mas onde os olhos de Inessa eram azuis, os de Alea eram castanhos como os meus. Alea foi a primeira a me notar. Ela ficou em silêncio, logo seguida por Inessa, que parou no meio da frase.
- Sara! - Alea gritou e correu em minha direção. O ar saiu dos meus pulmões quando ela colidiu com minha barriga. Eu a abracei com um pequeno sorriso. Inessa se juntou a nós e me abraçou também.
Ela olhou para meu rosto. - Você está machucada?
Pedi aos meus pais que escondessem os detalhes do meu cativeiro delas. Elas eram jovens demais para entender. Eu só podia esperar que ninguém contasse a elas sobre o vídeo. Minha barriga deu uma cambalhota e, por um momento, tive certeza de que vomitaria.
- Estou bem, - eu disse.
Precisava que elas acreditassem para que eu pudesse começar a acreditar também. - Estávamos tão assustadas! - Alea exclamou.
Eu assenti. Nunca tinha entendido o verdadeiro significado do medo, do medo absoluto e entorpecente do corpo até ontem. Rezei para que minhas irmãs nunca o experimentassem.
- Onde está a mamãe?
- Cozinhando, - disse Inessa.
Eu provavelmente deveria considerar comer alguma coisa, já que não comia nada há 24 horas. Mas não tinha certeza se meu estômago estava pronto para qualquer coisa.
Fui até a cozinha, onde minha mãe estava ocupada preparando o minestrone para o almoço. A cozinha cheirava ao intenso caldo de legumes e parmesão. Respirei fundo, deixando as memórias felizes do passado me inundarem. Eu tinha tantas memórias maravilhosas. Só precisava ter certeza de que elas superariam a única sombria que adicionei à lista ontem.
- Sara finalmente acordou! - Alea anunciou enquanto ela e Inessa entravam na cozinha atrás de mim.
Mamãe se virou, seus olhos se fixando em mim. A preocupação em seus olhos era tão forte, que tinha certeza de que nem Alea e Inessa poderiam deixar de notar.
- Está com fome?
Eu balancei a cabeça. Minha barriga ainda parecia como se eu estivesse em um barco durante uma tempestade pesada. - Você deveria comer, - mamãe encorajou gentilmente. O apelo em sua voz finalmente me conquistou. Eu só podia imaginar o quanto ela se preocupava comigo. Eu não queria dar a ela outro motivo.
- Como posso resistir ao seu minestrone? - Sentei-me à mesa de madeira. Na maioria dos dias, tomávamos café da manhã e almoçávamos em nossa grande cozinha. Só jantávamos na sala de estar quando papai e Flavio se juntavam a nós.
Inessa, Alea e mamãe se juntaram a mim na mesa e nós comemos. Apesar da minha náusea, forcei algumas colheres de sopa para baixo. Estava tão delicioso como sempre, mas eu simplesmente não conseguia comer mais. Eu me inclinei para trás e aproveitei a discussão de Alea e Inessa. As duas se amavam muito, mas não havia um dia em que não brigassem.
Uma mensagem iluminou o telefone da mamãe, de onde ele estava na mesa ao lado da tigela de sopa dela. Ela geralmente não permitia celulares na mesa. Talvez papai e Flavio estivessem enviando atualizações para ela.
A tela acendeu de novo bem quando a mamãe o afastou da mesa, obviamente para escondê-lo de mim. Tarde demais.
O pai de Paolo.
Oh, Deus. Eu não tinha pensado em Paolo desde a minha conversa com a mamãe no carro. Paolo, meu noivo. O homem com quem eu deveria me casar em dois meses, em um casamento que nossas mães planejaram por mais de um ano.
Mamãe me deu um sorriso tenso.
Ela realmente achava que eu não tinha visto quem tinha escrito para ela?
- Eles sabem?
A mãe assentiu. - Eles só estavam perguntando como você se sente.
Se fosse esse o caso, por que a mamãe escondeu o telefone no momento em que viu quem era?
Eu não tinha certeza de onde meu telefone estava. Ele
tinha sido destruído durante o acidente? Ou os russos o destruíram para evitar que fosse rastreado?
- Onde está meu telefone?
Mamãe levantou e pegou no balcão da cozinha. A tela estava rachada, mas quando liguei, funcionou como sempre.
Logo, as mensagens começaram a chegar.
- Nós mandamos uma mensagem para você ontem à noite. Não sabíamos que você não estava com seu telefone, - Inessa disse, olhando para cima de sua tigela, sua colher a um centímetro de seus lábios.
Examinei meu messenger. Havia mensagens das minhas irmãs, Valerio, Gianna, Aria, Marcella e Isabella. Nenhuma de Paolo. Se ele e os pais quisessem saber sobre minha saúde, poderiam ter me mandado uma mensagem. Abri a mensagem de Isa primeiro.
Se quiser conversar, estou na academia trabalhando no balcão hoje. Vai ser chato pra caramba. Muitos abraços.
Isa e eu éramos primas e gostávamos uma da outra, mas éramos diferentes. Ela era três anos mais nova que eu, então nunca saímos juntas. Ela, Flavio e Valerio sempre foram inseparáveis, e eu não queria interferir no vínculo deles. Isa tinha sido sequestrada três meses atrás. Ela nunca tinha falado comigo sobre o incidente, e eu nunca ousei perguntar.
Talvez fosse hora de mudar isso.
Abri as outras mensagens, mas todas basicamente me disseram a mesma coisa.
- Não há nenhuma mensagem de Paolo, - eu disse, desapontada.
A mãe abaixou a colher e seu sorriso ficou ainda mais tenso.
- Talvez ele queira te dar um pouco de espaço.
- Talvez. - Eu podia dizer que a mamãe estava escondendo algo de mim. Eu não queria pensar em Paolo e no meu casamento agora. Parte de mim se sentia culpada, quase como se eu tivesse alguma palavra a dizer sobre o que tinha acontecido. Em um nível intelectual, eu sabia que isso era um absurdo, mas isso não mudava o que sentia. - Eu gostaria de ver Isa na academia hoje. Ela me convidou.
Os olhos da mamãe se arregalaram em choque. Ela se levantou e pegou nossas tigelas. Eu imediatamente a ajudei enquanto Inessa e Alea limpavam a mesa e colocavam louça na máquina de lavar louça.
- Você acha que é uma boa ideia sairmos já?
- Eu não vou me esconder.
- Você não deveria se esconder, mas... - Mamãe se encostou no balcão da cozinha, o pano de prato agarrado em suas mãos enquanto ela me observava com as sobrancelhas franzidas. - Você parece tão... composta. Estou preocupada que você esteja tentando ser forte por nós. - A última coisa que ela sussurrou para que Alea e Inessa, que estavam cantando uma música de Taylor Swift a plenos pulmões, não pudessem ouvi-la.
- Você preferiria que eu desabasse e chorasse? - Engoli em seco porque podia sentir uma tempestade se formando bem fundo dentro de mim, e estava com medo da destruição que ela poderia causar se fosse desencadeada. Eu queria minha vida antiga. Queria normalidade. Nunca desabava. Nunca fui excessivamente emocional. Eu era confiável e calma. Talvez isso tenha vindo por ser a filha mais velha. Quando mamãe lutou depois de dar à luz Alea, assumi responsabilidades. Mesmo quando as coisas ficaram mais fáceis depois de alguns meses, eu nunca parei de ser uma espécie de mãe sombra.
Mamãe tocou meu ombro.
- Claro que não. Só estou preocupada com você.
- Eu sei, mãe. Mas a vida tem que continuar.
Os olhos da mãe brilharam, mas ela assentiu resolutamente e pegou o telefone.
- Vou ver se seu pai ou Flavio têm tempo para te levar lá. Tenho certeza de que vai te fazer bem falar com Isa.
***
Trinta minutos depois, papai e Matteo me pegaram.
Fiquei surpresa ao ver meu tio.
- Sua mãe disse que você está determinada a ver Isa na academia. Você está bem o suficiente para sair? - Papai perguntou enquanto segurava a porta da limusine preta aberta para mim enquanto Matteo se sentava no banco do motorista.
- Não estou ferida, - eu disse. As escoriações mal valiam a pena mencionar, e a dor já estava melhor. Papai não estava se referindo a cicatrizes físicas, no entanto. Os dois banhos que tomei esta manhã definitivamente ajudaram muito, não apenas com a dor, mas também com a sensação desagradável.
Entrei no banco de trás. Matteo sorriu para mim.
- Eu não esperava você, - eu disse a ele.
- Faz um tempo que não visito Gianna na academia. Hoje é um bom dia para mudar isso, - ele disse depois de um olhar penetrante para meu rosto.
Papai sentou no banco de trás comigo. Dei a ele um olhar curioso, mas ele apenas sorriu. Eles achavam que eu não sabia o que estava acontecendo? Eles estavam aumentando minha proteção. Eu tinha visto Marcella e Isabella perderem muitas liberdades depois que se tornaram vítimas do nosso mundo.
Tentei não pensar no fato de que Matteo provavelmente tinha visto o vídeo também. Se eu quisesse viver minha vida, precisava esquecer disso.
Quando entramos na academia da Famiglia, minha prima Isa estava de fato atrás do balcão da recepção, mas estava imersa em um livro apoiado na tela do computador. A mãe de Isa, minha tia Gianna, era dona da academia. Através da parede de vidro à direita, eu podia vê-la dando um curso de ioga para meia dúzia de mulheres, todas elas rostos familiares.
- Sua vigilância está falhando, - Matteo disse a Isa enquanto se aproximava dela e dava um beijo em sua têmpora.
Ela fez uma careta.
- Oh, por favor, guardas estão por toda parte.
Os olhos dela passaram do pai para mim. Ela não sorriu, pelo que fiquei estranhamente grata. Eu também não estava com vontade de fingir sorrir. Os óculos dela estavam apoiados no topo da cabeça, abraçando o coque bagunçado em que seu cabelo castanho estava preso. Ela me lembrava muito minha tia Gianna.
- Vou sentar aqui enquanto vocês conversam, - disse papai enquanto afundava em uma das cadeiras na pequena sala de espera.
- Eu cuido da recepção, - disse Matteo.
A área da academia com os aparelhos ficava à esquerda, e várias mulheres que treinavam ali ficavam nos lançando olhares curiosos.
- Esta é uma academia feminina. Nossas clientes não se sentirão confortáveis se houver homens em todos os lugares, - disse Isa.
Matteo afundou na cadeira atrás do balcão e apoiou os pés em uma segunda cadeira. - Elas vão ficar bem.
- Mamãe não vai ficar feliz, - Isa disse com um pequeno encolher de ombros enquanto gesticulava para que eu fosse até ela. Os olhos de todos pareciam estar em mim agora. Eu me encolhi e segui Isa para dentro do escritório.
Ela ainda carregava o livro que estava lendo. Ela apontou para o sofá de pelúcia.
- Fique confortável. - Então ela caminhou em direção a uma cafeteira antiga onde tudo ainda tinha que ser feito à mão.
- Expresso?
Balancei a cabeça e me joguei no sofá, afundando nas almofadas macias.
- Forte demais para mim. Prefiro chá.
- Eu vivo de cafeína. Estou tentando canalizar meu Stephen King interior sem recorrer à heroína ou à bebida. - Ela preparou um expresso. O barulho e o zumbido da máquina encheram a sala, e decidi que gostava bastante do som. Isa estava focada em preparar seu expresso, então tive a chance de observá-la de perto.
Seu próprio sequestro havia ocorrido três meses antes, após o casamento de Amo. Pelo que eu sabia, nem ela nem sua mãe haviam se machucado seriamente durante o incidente, mas eu ainda notava mudanças em Isa sempre que a via. Ela estava ainda mais séria e retraída do que antes, sempre imersa em um livro ou rabiscando em um bloco de notas.
Ela veio até mim com sua xícara de café expresso e uma garrafa de água. Percebi que ela não estava usando sapatos, apenas meias de lã grandes que tinha puxado até os joelhos. Uma era rosa, a outra roxa, e o único toque de cor em sua roupa preta de leggings, vestido de avental e blusa de gola alta. Ela estendeu a garrafa de água. Eu a peguei, mas não bebi. Isa afundou ao meu lado e tomou um gole de seu café expresso. - Você sabia que Stephen King escreveu O Iluminado sob a influência de álcool e heroína? E ele nem se lembra de ter escrito Cujo.
- Espero que você não esteja pensando em tentar o mesmo, - eu disse. - Mas considerando a natureza
perturbadora de muitos dos livros dele, não estou surpresa. - Não que eu tivesse lido muitos deles. Não tinha estômago para eles, e agora que minha própria vida tinha sido tocada pela escuridão dessa forma transformadora, ainda menos.
Isa fez uma cara chocada. - Perturbador, mas genial. E se você não gosta de livros perturbadores, não deveria ler os meus.
- Você escreveu um livro?
Isa corou e tomou outro gole de seu expresso, o que significava que a xícara já estava vazia. Eu nunca entendi a necessidade de um expresso. Eu gostava de bebidas que durassem. Nada era melhor do que abraçar uma grande caneca de chá nas palmas das mãos e senti-la esfriar lentamente enquanto eu inalava o aroma reconfortante.
- Estou trabalhando principalmente em contos e novelas, mas também estou trabalhando em um livro, sim.
- Uau. - Eu procurei no rosto dela. - Você usa isso para trabalhar o que aconteceu?
Isa largou a pequena xícara e se recostou no braço da cadeira, puxando uma das pernas contra o peito. Ela olhou direto nos meus olhos. Eu podia dizer que ela estava pesando o quanto compartilhar. Eu duvidava que ela fosse alguém que falasse sobre coisas que a incomodavam com muitas pessoas, se é que falava.
- Minha escrita se tornou mais cínica e sombria. Também melhorou. Li em algum lugar que grandes escritores nascem de traumas. Não tenho certeza se é verdade, mas escrever definitivamente se tornou uma válvula de escape.
Ela soprou algumas mechas de seu cabelo castanhoavermelhado para fora do rosto. Seu coque bagunçado mal continha mais sua juba selvagem. - Você quer falar sobre isso?
Eu estava dividida. Eu tinha vindo aqui para falar com Isa, mas também estava aterrorizada de como colocar meus medos em palavras os tornaria mais reais. O pesadelo da noite passada sobre o rosto lascivo do nosso captor tinha me abalado.
- Estou preocupada sobre como o ontem vai me moldar e o futuro. Não quero que uma coisa ruim determine todo o resto. Não quero dar a eles o poder. Mas algumas coisas estão fora do meu controle, e isso realmente me assusta.
Isa assentiu. Ela inclinou a cabeça.
- O que está fora do seu controle? Você está preocupada em ser sequestrada de novo?
Isso nem era algo que eu tinha considerado ainda. Balancei a cabeça lentamente. Papai nunca permitiria que isso acontecesse. Minha vida de ir a algum lugar sem guardacostas definitivamente acabou.
- Duvido que aconteça de novo. É só que... me preocupo com como as pessoas vão me tratar depois de saber o que aconteceu.
- Você não pode mudar as pessoas. Algumas delas sempre vão falar merda. Elas gostam de fofocar. Você é uma sobrevivente, então não ligue para esses idiotas. O carma vai lhes cobrar.
Dei uma risadinha, mas rapidamente fiquei séria de novo.
- Você sabe que algumas pessoas sempre nos culpam quando coisas assim acontecem.
- Você quer dizer ter sido abusada sexualmente?
Engoli em seco; só de dar um nome a isso meu estômago embrulhou.
- É.
Ela suspirou. - Nós, mulheres, sempre somos enganadas. - Ela cravou os dentes no lábio inferior. - Eu sei que pode parecer impossível agora, mas, eventualmente, o que aconteceu não estará mais na vanguarda dos seus pensamentos.
- É assim para você?
Isa deu de ombros. - Ainda está lá, principalmente à noite ou quando me assusto com um barulho, mas está melhor. Estou feliz que haja guerra, então não terei que ver nenhum Falcone tão cedo. - Ela fez uma careta. - Essa parte será mais difícil para você.
- Eu raramente via Maximus no passado, e isso não vai mudar no futuro. E os russos... duvido que os veja novamente.
Isa soltou uma risada sem humor. - Eles provavelmente estarão todos mortos dentro de um ano, não se preocupe.
Eu me perguntei se ela desejava isso para seus sequestradores, para a Trindade Profana. Eles provavelmente não seriam servidos com justiça, o que quer que fosse.
Isa e eu conversamos por mais alguns minutos sobre os livros dela antes de voltarmos para o saguão. Papai ainda estava na cadeira, mas Matteo tinha ido embora. Gianna também não estava mais na sala de ioga. A aula dela obviamente tinha acabado.
- Meus pais provavelmente estão discutindo em algum lugar, - disse Isa com um pequeno encolher de ombros como se não fosse grande coisa. Eu nunca tinha ouvido meus pais discutirem. Eu não tinha certeza se eles simplesmente nunca brigavam ou se eram muito bons em esconder suas discussões dos meus irmãos e de mim.
A porta do ginásio se abriu, e Cara entrou, vestida com roupas de ginástica e com o cabelo castanho preso em um rabo de cavalo alto. Ela era a mãe de Maximus. Ela congelou no lugar com os olhos arregalados quando me viu, e eu fiz o mesmo. Os olhos dela eram azuis, não o castanho-
avermelhado surpreendente do filho, e fiquei feliz que eles não compartilhassem muitas características físicas.
Ela se recuperou mais rápido. Sua expressão se tornou compassiva, e eu temia o que ela diria. Ser lembrada de Maximus veio cedo demais. Eu queria bani-lo dos meus pensamentos, mas sua presença abriu feridas.
- Sinto muito, Sara, - ela sussurrou. - Eu sei que pode ser difícil ouvir, mas Maximus está perturbado. Ele não queria nada disso.
- Cara, - papai disse em um tom duro enquanto se levantava da cadeira. - Já chega. Sara não precisa ouvir isso agora. Ela já tem o suficiente para assimilar.
Ela endireitou os ombros. - Você está cuidando da sua filha, Romero, e eu estou cuidando do meu. Maximus foi uma vítima nisso também.
Eu podia ver a preocupação no rosto de Cara por seu filho. Eu queria dizer a ela que entendia e não queria que Maximus se sentisse culpado, mas não consegui me obrigar a dizer as palavras. Eu só queria ir embora.
- É diferente, - disse Matteo, que entrou em cena sem que eu percebesse. - Maximus é um cara durão. Ele vai sobreviver.
- Isso é um sexismo sério, pai, - disse Isa, cruzando os braços. - Homens também podem ser vítimas de abuso sexual.
- Tenho certeza de que pode ser o caso, Isa, - disse Matteo em uma voz que sugeria que ele não estava convencido.
Papai colocou uma mão no meu ombro.
- Precisamos ir agora. - Eu dei um aceno conciso.
Minha garganta estava apertada demais para responder.
Conversar com Isa tinha me ajudado, mas o que veio depois tinha aberto a lata de minhocas que eu queria manter fechada. Eu não queria pensar em Maximus porque isso significava reviver os detalhes do que aconteceu. Simplesmente não conseguia fazer isso agora. Eu queria ter minha antiga vida de volta, e isso não aconteceria se eu desmoronasse.
Provavelmente isso não aconteceria.