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O sol mal tinha batido no alto do céu e o Morro do Horizonte já fervia. As paredes coloridas, os becos apertados, os cachorros soltos, a molecada jogando bola descalça. Tudo pulsava. Tudo tinha vida. Ali, onde o Estado entrava só de farda e fuzil, Kaíque era rei sem coroa.
Camisa do Flamengo, bermuda da Oakley e o tênis Nike reluzente - sujo de barro, mas brilhando como ouro. Ele passava e o morro abria espaço. Não pela violência, mas pelo respeito. Filho da dona Jussara, falecida há quatro anos, criado sozinho desde os 14. Subiu no corre rápido, ligeiro, mas sempre com cabeça.
- Fala, Kaíque. Já tá com a tropa na pista? - perguntou Binho, seu braço direito.
- Tô sempre, fi. Aqui não tem descanso, só visão.
Ele se sentou na laje da sua quebrada preferida. Dali dava pra ver a cidade toda: os prédios distantes da Zona Sul, os carros deslizando nas vias expressas, os helicópteros sobrevoando como urubus de elite. E lá no fundo, as casas gigantes, cercadas por muros altos e seguranças armados.
Kaíque riu sozinho. Aquilo não era pra ele - ou pelo menos, não era o que o sistema queria que fosse. Mas ele não ligava. Já tinha mulher, dinheiro, moral e fama onde importava. No morro, o nome dele era lei.
Mas nos últimos dias, uma lembrança insistia em voltar.
A garota do vidro escuro.
Era só mais uma SUV importada parada no trânsito, mas dentro dela, havia um rosto. Um olhar que atravessou até a película fumê. Cabelo castanho claro, pele lisa, expressão de quem nunca soube o que é correr da sirene. Mas o que prendeu Kaíque foi o jeito que ela olhou de volta. Sem medo. Quase com curiosidade. Quase com vontade.
Desde então, aquele olhar grudou na mente dele como hit de verão.
- Essa patricinha vai me dar trabalho - murmurou, acendendo um cigarro.
O morro falava, e Kaíque ouvia. E naquele dia, o morro sussurrava uma coisa só:
A paz dele tava com os dias contados.