Demorei a levantar. Meu corpo parecia reconhecer antes da minha mente que algo estava errado. O silêncio da casa não era o mesmo silêncio das manhãs anteriores, carregado de cumplicidade. Era um silêncio oco, pesado, desabitado. Um silêncio que grita.
- Belle? - Chamei, a voz rouca, quebrada no ar como se temesse a resposta que não viria.
Não houve resposta.
Não havia cheiro de café, nem som de xícara na bancada, nem aquele leve arrastar dos pés descalços dela pelo chão. A cozinha estava limpa demais. Intocada. Como se ninguém tivesse estado ali desde ontem. Como se tudo tivesse sido apagado.
Meus olhos caíram sobre a mesa.
Havia um bilhete. Um pedaço de papel dobrado. Meu coração disparou, os pés vacilaram. Cada passo até ele foi como atravessar uma ponte prestes a ruir. Peguei o papel com mãos trêmulas e, assim que li a caligrafia suave, precisei me segurar para não cair.
"Me esqueça."
As duas palavras mais cruéis que alguém pode escrever. As duas palavras que dissolveram minha alma com a precisão de uma lâmina.
Li uma, duas, três vezes... como se o sentido pudesse mudar, como se fosse possível que aquele bilhete tivesse sido escrito por engano. Mas não. A letra era dela. O corte era intencional.
E ainda assim... impossível de aceitar.
Senti o ar faltar. Um nó se fechou em minha garganta e o peito começou a arder. Um pânico mudo tomou conta de mim.
Corri para o quarto. Abri o armário. Gavetas. Malas. Nada. Nenhuma roupa, nenhum perfume. Nenhuma presença. Tudo dela havia sumido, como se jamais tivesse existido. Como se o último ano fosse um delírio construído pela minha carência mais funda.
- Belle... - Sussurrei, sentindo o nome arder na língua.
Meus joelhos cederam, apoiei-me na cama, tentando respirar, tentando entender como aquela mulher que adormecera nos meus braços na noite anterior simplesmente evaporou. Tínhamos jantado à luz de velas, rido de uma lembrança boba, feito amor como quem sela uma promessa. E agora ela tinha ido embora como se nunca tivesse estado aqui.
Saí da casa como um homem em chamas. Verifiquei todos os cômodos. O jardim. A varanda. O banheiro. O quintal. Gritei seu nome tantas vezes que minha garganta arranhou. Corri até a praia, onde a areia ainda trazia marcas dos nossos passos da noite anterior. Mas ela não estava ali.
O vento cortava minha pele, e as ondas levavam minha voz. Eu gritava como um louco.
Não.
Como um homem que acabava de ser quebrado.
Voltei para dentro da casa, os pés pesados, o corpo trêmulo. Afundei no sofá como se aquele fosse o único lugar do mundo que ainda pudesse me sustentar. Minhas mãos foram ao rosto, e então vieram as memórias.
O jeito como ela ria ao me provocar. O gosto do sal em sua pele. As noites em que prometemos - mesmo sem dizer em voz alta - que aquilo não era apenas uma fuga. Era real. Real demais.
Por que, então, ela teria ido embora?
A raiva subiu de repente, crua e descontrolada.
Ela tinha me enganado? Me usado?
Ou será que... ela ...
Mil pensamentos se perdiam em minha mente em confusão.
Nada fazia sentido. Nada.
A única certeza que eu tinha naquele momento era que, onde quer que Belle estivesse, ela havia levado algo de mim.
E o que ela deixou para trás... era um homem quebrado, faminto de respostas, e prestes a perder o controle da própria sanidade.
Capítulo 1
Dois Meses Antes do Encontro
Isabelle Alice Ravelli
Meus dedos percorriam as teclas do piano em um ritmo frenético, quase desesperado. A melodia de Lacrimosa preenchia o ambiente com uma dor que não era apenas musical, mas visceral. Tocava como se fosse a última coisa que restava em mim. Uma última tentativa de respirar sem sufocar. A repetição incansável da música era a minha maneira de sangrar sem feridas, de manter a lucidez enquanto o mundo ao meu redor ruía em silêncio.
As palavras do meu pai ainda ecoavam como um veneno que queimava sob a pele. Não havia escolha, não havia escapatória. E quanto mais eu tocava, mais a dor ganhava forma. A cada nota, meu corpo tremia, meus músculos gritavam, minhas mãos ardiam. Mas eu não parava. Porque parar significava encarar a realidade, e eu ainda queria me enganar por mais alguns minutos. Talvez, se eu levasse aquela música até o fim, o grito dentro de mim se calasse por um instante.
Mas era ilusão. Assim como tudo.
Eu estava perdida. Completamente sem saída. E faria o que fosse preciso pela minha mãe.
Executei as notas finais com os olhos embaçados, as lágrimas banhando meus dedos, tornando-os insensíveis. Foi quando senti uma mão pousar sobre a minha, interrompendo o fluxo da dor.
- Vai acabar se machucando, piccola. - A voz fria de Paolo Caruso me atravessou como um estalo no meio do silêncio.
Levantei o rosto devagar. Ele estava ali, com aquele sorriso contido, cortês demais para ser genuíno. Paolo sempre fora assim: calculado, controlado, como se nada no mundo o abalasse. Desde que o acordo entre nossas famílias fora selado, ele mantinha uma postura gentil, mesmo quando eu o desrespeitava com meu silêncio nos jantares, com minha ausência em compromissos.
Mas isso não me tranquilizava. Muito pelo contrário. Algo em sua calma me provocava arrepios. Havia uma sombra em seus olhos que nunca revelava intenção alguma.
- Estou bem. - Me apressei em me levantar, sem cerimônia, mantendo a distância.
Ele nada fez. Apenas observou. Nunca havia tentado nada, nem mesmo um beijo, mas eu não queria testar os limites da sua passividade.
- Calma. Vim em paz. Sei que seu pai negou o seu ano sabático...
Minhas unhas se cravaram na palma da mão. Tinha implorado aquele ano como um último suspiro de liberdade. Um ano longe daquela casa, daquela gaiola dourada. Um ano para cumprir uma promessa feita à minha mãe antes dela entrar em coma. Ela sonhava que eu conhecesse alguns países, começando pela Grécia. Dizia que lá eu encontraria o amor. Eu sorri amargamente. O amor havia sido arrancado de mim antes mesmo de ser permitido.
- Me surpreende saber que meu pai se abriu com você.
- Ora... - Paolo ergueu a mão para tocar meu rosto, mas eu me afastei com suavidade. Isso o fez sorrir de lado, e ele baixou a mão. - Eu o convenci de que seria importante para você. Além disso, antes de um ano não poderemos nos casar. Tenho compromissos, viagens. Não poderei lhe dar uma lua de mel decente. Então, você está livre para viajar.
Livre.
Era irônico o modo como ele dizia isso. Eu não era livre. Nunca fui.
- Imagino que já tenham preparado uma escolta para me vigiar.
- Não, piccola. - Seus olhos brilharam com algo que me gelou por dentro. - Te darei a liberdade que precisa. Porque você tem o que perder. E sei que não seria tola. Basta manter contato. Ao menos duas vezes por mês. Caso contrário, eu vou te encontrar. E lembre-se: no final deste ano, você estará comigo, naquele altar.
A imagem da Cathédrale Saint-Sulpice se formou na minha mente como um aviso. Aquele lugar não poderia ser mais apropriado para o fim da minha história. Majestosa, fria, imponente... o cenário ideal para uma tragédia. Caminhei por seus corredores ao lado da minha madrasta e me senti pequena. Apagada. Naquela tarde, a luz atravessava os vitrais com um tom glacial, como se a própria igreja chorasse por mim. Ali, naquele altar, encenaria o pior dos teatros: o casamento com um homem que eu jamais amaria, sorrindo para aparências, enquanto minha alma se calava.
- Não acredito em você...
- Nunca menti, Alice. Tenho sido educado, paciente. Mesmo sabendo que este casamento te dilacera. Mas acredite, com o tempo, você vai aceitar ser minha esposa. E sua mãe continuará recebendo o melhor tratamento.
Mencionar minha mãe era sua arma mais afiada. E funcionava. Desde que os médicos disseram que ela tinha apenas uma mínima chance de despertar, eu havia me agarrado à esperança. Faria tudo. Tudo.
- Seu pai te dará suporte financeiro e a liberdade que pediu. Cumpra sua parte no acordo, e tudo ficará bem.
Ele acariciou meu rosto com frieza e se afastou, deixando para trás apenas o eco da sua ameaça velada.
Fiquei ali, imóvel, sentindo o ar preso nos pulmões. Algo estava errado. Tudo parecia... armado. Mas o que eu podia fazer?
Nada. Eu não tinha escolhas. Era isso ou o vazio.