Capítulo 3 Joana - 2. O meu Príncipe Encantado

"O que eu queria?" repeti a pergunta de Paulo, o tom carregado de uma melancolia agridoce. Era uma pergunta simples, direta, mas que ecoava um vazio profundo dentro de mim. O que a menina Joana queria? Em algum momento, eu sequer tive permissão para ter desejos próprios? "Eu acho que... eu queria ter tido uma infância 'normal'. Sei lá, essas coisas que as outras meninas tinham e que pareciam tão banais para elas, mas que para mim eram um universo distante."

Olhei para as minhas mãos, os dedos entrelaçados nervosamente. "Eu queria ter tido amigas de verdade, sabe? Meninas com quem eu pudesse sair sem ter que me preocupar com a postura, com o sorriso perfeito, com o que minha mãe iria pensar. Queria ter ido ao shopping no sábado à tarde, comer besteiras, rir de coisas bobas... Como eu queria poder comer doces..."

Uma pontada de desejo infantil me atingiu com força. "Acho que essa é a coisa que eu mais queria. Parece bobo, não é? Mas uma vez, quando eu tinha uns sete anos, um garoto na escola me ofereceu um bombom. Era embrulhado em papel alumínio colorido rosa, e eu nunca tinha provado um. Minha dieta era tão restrita por causa dos concursos... Mas o Thales me convenceu. Ele sempre conseguiu me convencer a fazer coisas que eu não deveria."

A menção do nome pareceu despertar uma faísca de curiosidade no olhar de Paulo. "Thales o... seu marido? O pai do seu bebê?"

Senti uma onda de raiva quente me invadir. A palavra "bebê" soou como uma agressão, um lembrete doloroso de algo que... que não existia. "Não houve bebê!", exclamei, a voz mais alta do que pretendia. "Nunca houve um bebê! Thales... Thales era meu príncipe encantado. Pelo menos, era o que eu acreditava na época."

Tentei controlar a respiração, sentindo o rosto corar. "Nós tínhamos que 'namorar' escondido. Minha mãe... ela provavelmente teria um ataque se soubesse que eu estava interessada em um menino. Thales era... tão lindo. Tinha cabelos cor de mel e olhos azuis que pareciam o céu em um dia claro. Ele era tão fofo comigo, tão atencioso..."

Minha voz vacilou de repente, como se uma sombra tivesse cruzado minha mente. Uma imagem fugaz, fragmentada: o rosto de Thales, não mais doce e sorridente, mas distorcido pela raiva, a mão erguida... um impacto... um grito abafado que eu não conseguia identificar. Senti um formigamento nas bochechas, como se a dor daquele golpe fantasmagórico ainda ecoasse em minha pele.

Fiquei em silêncio por um momento, a confusão toldando meus pensamentos. Isso... isso aconteceu mesmo? Thales... ele nunca faria algo assim comigo. Ele é meu marido, meu confidente... meu primeiro amor.

"Joana?" A voz de Paulo me trouxe de volta à realidade, suavemente. "Você pareceu... perturbada por um instante."

Balancei a cabeça levemente, tentando afastar aquela memória incômoda. "Não... não foi nada. Só uma... uma lembrança passageira. Thales jamais faria algo para me machucar."

Respirei fundo e continuei a história, tentando me agarrar à narrativa mais segura do passado. "Nossa amizade começou quando éramos bem pequenos. Nossas mães se conheciam por causa dos concursos, a irmã mais velha dele concorria também. No começo, ele era só um menino engraçado que fazia caretas e me contava piadas bobas. Minha mãe até gostava dele nessa época, acredite, ou só fingia gostar da família dele, nunca soube ao certo. Ele tinha olhos claros, era magro, bonito... e o principal: ele fazia fotos para algumas lojas da cidade como garoto propaganda. Minha mãe via potencial nele, assim como via em mim."

Um sorriso amargo curvou meus lábios. "Eu também fiz algumas fotos para divulgar algumas lojas de roupas e brinquedos, mas a concorrência sempre grande para isso, existiam muitas meninas mais bonitas e fotogênicas. Mas com ele, era diferente. Ele era um menino bonito, fotogênico, e isso agradava as pessoas. Nós passamos a nos encontrar mais, nos bastidores dos concursos, em eventos... Ele era um dos poucos que não me via apenas como 'a próxima miss'. Ele me via como... Joana."

Lembrei das nossas conversas secretas, dos bilhetes trocados escondidos das nossas mães superprotetoras. "Nossa amizade foi evoluindo aos poucos. Ele era o único que parecia entender a pressão que eu sentia, mesmo que ele também vivesse sob os holofotes, de certa forma. Ele sabia o que era ter a aparência constantemente avaliada."

Um calor suave invadiu meu peito ao recordar nosso primeiro beijo. "Uma vez, quando eu tinha treze anos. Menti para minha mãe, disse que ia fazer um trabalho de escola na casa de uma colega. Mas o Thales tinha me chamado para ir a um campo afastado, cheio de margaridas. Ele sabia o quanto eu gostava de flores. No final da tarde, o sol se pondo e pintando o céu de laranja e rosa, ele segurou meu rosto entre as mãos e me beijou."

Fechei os olhos por um instante, tentando reviver aquela sensação fugaz de liberdade. "Pode ter sido coisa de menina apaixonada, claro. Mas naquele momento... naquele instante mágico, com o cheiro doce das margaridas e o calor do sol na minha pele... eu senti que finalmente tinha encontrado alguém que poderia me tirar da minha prisão dourada."

Paulo me observava com uma intensidade calma, como se estivesse montando as peças de um quebra-cabeça complexo. "Joana, você descreve esse primeiro beijo com Thales como um momento de libertação. Mas a relação de vocês evoluiu de que forma? Ele realmente se tornou essa figura que te tiraria da sua 'prisão'?"

Hesitei, revivendo as nuances daquele relacionamento. Houve momentos de ternura genuína, de cumplicidade juvenil. Mas havia também... as sombras. As pequenas brigas, as mentiras disfarçadas de preocupação, a traição... "No começo... sim. Ele era diferente. Me entendia, ou pelo menos, parecia entender. Éramos jovens, apaixonados... eu idealizava muito ele, eu sei. Ele era o meu escape."

"E a sua mãe? Como ela reagiu quando descobriu o relacionamento?" Paulo perguntou, a voz inquisitiva.

"Ela não soube na verdade, eu nunca contei, só descobriu quando eu e ele já estavamos namorando a alguns anos, mas vivemos o nosso amor com paz, por um tempo", confessei, desviando o olhar. "Nós éramos muito discretos. Eu inventava desculpas para vê-lo. Ele também tinha seus próprios segredos, suas próprias... artimanhas para se encontrar comigo. Tínhamos medo da reação dela. Ela tinha uma visão muito específica de quem era 'apropriado' para mim."

"Apropriado em termos de status? Aparência?" Paulo insistiu, tocando em pontos sensíveis.

"Os dois", suspirei. "Thales era bonito, popular... mas ele não era 'influente' o suficiente aos olhos dela. Ele não vinha da 'família certa'. Era uma batalha constante para manter nosso relacionamento longe dos olhos dela. Fora que ela me achava muito nova para namorar, eu tinha que focar no que importava. Nos sonhos dela..."

"Você mencionou que o Thales jamais a machucaria... tem algo sobre ele ter te machucado que você quer falar? Você consegue se lembrar de mais detalhes?" A voz de Paulo era cautelosa, respeitando minha hesitação.

Senti um nó na garganta. Aquele flash de raiva no rosto de Thales, a dor lancinante... eu queria enterrar aquela imagem de volta no fundo da minha mente. "Foi só... um instante de confusão. Um pesadelo que invadiu minhas lembranças. Não aconteceu de verdade. Thales nunca seria violento comigo." Minha voz vacilou levemente, traindo minha tentativa de soar convincente.

Paulo assentiu lentamente, sem insistir, mas seu olhar perscrutador dizia que ele havia notado minha hesitação. "E a gravidez, Joana? Você não quer falar sobre isso? Você ainda sente que nunca aconteceu?"

A pergunta me atingiu como um golpe. Senti o sangue ferver nas minhas veias. "Já disse! Não houve gravidez! Isso é uma invenção da sua cabeça! Você está tentando me confundir!" Minha voz se elevou, carregada de uma raiva defensiva.

"Eu entendo que seja doloroso, Joana", Paulo respondeu com a mesma calma de sempre. "Mas nós precisamos explorar esses sentimentos... essas memórias, por mais difíceis que sejam."

"Não há nada para explorar! Eu nunca estive grávida! E o Thales... ele era o único que me fazia sentir viva naquela época. Ele era meu refúgio!" As palavras saíram atropeladas, carregadas de uma intensidade desesperada.

O toque suave do relógio na mesa de Paulo sinalizou o fim da sessão. "Nosso tempo acabou por hoje, Joana. Mas eu gostaria que você pensasse sobre o que conversamos. Sobre a menina Joana, sobre seus sonhos, sobre a relação com Thales e sobre... a gravidez."

Levantei-me da poltrona, sentindo o corpo tenso e o ignorando. Agradeci vagamente e caminhei em direção à porta. Ao sair do consultório, a figura alta e familiar sentada em uma das poltronas na sala de espera me atingiu como um raio. Thales. Ele estava ali, como tinhamos combinado dele sempre me buscar após as sessões de terapia que ele havia me obrigado a fazer, e lá estava ele, com aquele sorriso charmoso que sempre me desarmava. Seus olhos azuis brilhavam, e ele parecia ainda mais bonito do que eu me lembrava, reparei do outro lado da sala uma mulher de olho nele, minha mãe sempre me disse que não se pode confiar numa mulher mesmo, não podem ver um homem com uma aliança que já se preparam para dar o bote, mas ele estava ali por uma pessoa, apenas por mim.

Ele estava folheando uma revista. Uma revista de moda familiar. A capa estampava meu rosto, o meu corpo... ou melhor, o corpo de quem eu costumava ser. Cabelos longos e loiros esvoaçantes, a pose estudada, o corpo escultural em um vestido deslumbrante de grife. A perfeição engarrafada em papel brilhante.

Meus olhos correram para o espelho na parede da sala de espera. A imagem que me encarou era um choque brutal. Cabelos verdes sem vida, o rosto pálido e inchado, o corpo que eu sentia pesado e disforme sob a roupa larga. Gorda. Nojenta. Foi o pensamento cruel que atravessou minha mente usando a voz da minha mãe. O que aconteceu comigo? Como eu me tornei isso?

A imagem na capa da revista parecia zombar de mim. Aquela mulher radiante, confiante, era um fantasma distante, ela me olhava, e ela ria do que via. Foram só cinco meses... Cinco meses desde que... desde que tudo mudou. Como era possível uma transformação tão devastadora? Eu estava destruída.

Uma onda avassaladora de angústia me atingiu. A culpa, a dor, a perda... tudo se misturou em um turbilhão incontrolável. Sem conseguir conter, avancei em direção à revista nas mãos de Thales e a arranquei com fúria.

"Joana! O que você está fazendo?" A voz surpresa de Thales mal chegou aos meus ouvidos enquanto eu rasgava a capa, as páginas, com uma violência desesperada.

As lágrimas jorraram dos meus olhos, quentes e salgadas, enquanto eu gritava, um som primal de dor e raiva. "A culpa é dela! Dela! Foi ela que fez isso comigo!"

Thales tentou me segurar, seus braços fortes envolvendo meu corpo trêmulo. Paulo surgiu na porta do consultório, com o rosto preocupado. Juntos, eles tentaram me acalmar enquanto eu me debatia, a revista esfarrapada caindo aos meus pés como os pedaços de uma vida que eu não reconhecia mais.

"A CULPA É DELA! A CULPA É DA CLARA!", eu gritava o nome daquela maldita em meio a soluços convulsivos e lágrimas de ódio.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022