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Eu queria poder começar essa história de um jeito diferente. Queria poder pintar um quadro de uma infância ensolarada, de uma mãe que me abraçava e dizia que eu era suficiente, de amigos leais e risadas despreocupadas. Queria ter uma daquelas histórias bonitas que a gente lê nos livros, sabe? Contos de fadas com finais felizes e lições inspiradoras. Mas a verdade é que a minha história parece mais um rascunho borrado, cheio de arestas e cores desbotadas. E sinto muito, de verdade, que você precise mergulhar nessa bagunça, nessa ilusão em que eu inevitavelmente me perdi.
O cheiro de lavanda até que era agradável, uma tentativa suave de acalmar o caos que borbulhava dentro de mim. Sentei-me naquela poltrona macia, sentindo o tecido aveludado sob meus dedos tensos. Meus cabelos verdes, ironicamente aclamados como exóticos e únicos, agora pareciam pesados, uma cortina pálida escondendo o turbilhão por trás dos meus olhos. Olhei para o senhor Paulo, sentado à minha frente, com aquele olhar calmo e convidativo que os psicólogos parecem dominar tão bem. Era um homem que aparentava ter 40 anos, baixinho, com no máximo 1,77 de altura, ele tinha um jeito que eu conhecia muito bem pelo meu trabalho, eu tinha certeza de que ele era gay, e eu sinceramente gostava disso, pois seria mais fácil assim.
"Boa tarde, Joana. Obrigado por vir novamente", ele disse, a voz suave como um afago hesitante.
"Boa tarde", consegui murmurar, sentindo as palavras rasparem na minha garganta seca. Um peso invisível parecia me prensar contra a poltrona, dificultando qualquer movimento, qualquer respiração mais profunda.
"Como você se sente hoje?", ele perguntou, com um olhar gentil, mas sua pergunta poderia ser comparada a um insulto.
Como eu me sinto? A pergunta ecoou na minha mente como uma piada de mau gosto. Como se ele realmente quisesse saber a sinfonia dissonante que tocava incessantemente dentro de mim. Sinto como se eu fosse feita de cristal, prestes a se estilhaçar ao menor toque. Sinto o eco constante de vozes – a dela, principalmente – me dizendo que eu nunca fui boa o suficiente, que cada erro meu era uma mancha indelével. Mas para ele, eu apenas disse: "Cansada. Muito cansada."
"Cansada de quê, Joana?" ele insistiu gentilmente, anotando algo em sua prancheta. Será que ele realmente conseguia decifrar alguma coisa naquele rabisco?
Meus olhos percorreram a estante de livros, buscando refúgio em títulos que eu sequer conseguia processar. Cansada de sustentar essa fachada. Cansada de sorrir para lentes de câmeras enquanto um grito silencioso se engasga na minha garganta. Cansada de tentar preencher as expectativas impossíveis de uma mulher que nunca soube o que era contentamento. "Acho que... da vida em si."
Um suspiro quase imperceptível escapou dos lábios dele. "Você mencionou que gostaria de falar sobre sua infância na última sessão... sobre algumas experiências do passado, talvez?"
Meu corpo tencionou involuntariamente. "Infância". A palavra soou como um espectro, evocando imagens que eu me esforçava tanto para manter trancadas a sete chaves. Minha infância... um palco iluminado, vestidos de babados que coçavam, um sorriso plástico colado no rosto e a voz da minha mãe, sempre no meu ouvido como um chicote: 'Postura, Joana! Mais charme! Você tem que brilhar!'
"Minha mãe... ela sempre teve uma visão muito clara do que eu deveria ser", comecei, a voz agora um fio tênue carregado de uma amargura antiga. "Desde que eu era pequena... eu não tinha muita escolha. Miss Mini Mundo, Miss Primavera, Miss Não Sei Mais O Que... Era uma coroação atrás da outra. Nunca foi sobre o que eu queria, entende? Era sobre o sonho frustrado dela sendo vivido através de mim."
Ele assentiu, o olhar fixo em mim, esperando que eu continuasse a desenrolar esse novelo emaranhado.
Ele não entende, pensei com uma ponta de impaciência.
"Ela escolhia minhas roupas, a maquiagem, até a forma como eu devia sorrir", continuei, a voz agora quase monótona, desprovida de qualquer emoção real. "Não havia espaço para correr descalça na grama, para ter amigos de verdade, para ser simplesmente uma criança. Era só ensaio, passarela, flashes... A vida dela era a minha."
"E como você se sentia em relação a isso, Joana?" a voz dele era suave, mas carregada de uma curiosidade persistente.
Hesitei novamente, mordiscando o lábio inferior. Como eu me sentia? Sufocada. Invisível. Como um objeto de decoração, bonito de se admirar, mas sem alma, sem vontades próprias. "Eu... eu não sei. Era normal. Era a minha realidade."
"Mesmo sem ter amigos de verdade?" Ele tocou em uma ferida que nunca cicatrizou.
Minhas defesas se ergueram instantaneamente. "Eu tinha as outras meninas dos concursos! Nós éramos amigas!" Mentira deslavada. Eram concorrentes, predadoras famintas por um pedaço daquele brilho efêmero. Sorrisos forçados, inveja disfarçada em abraços apertados. Meninas que fui ensinada a tratar como rivais, a odiá-las, a invejá-las, mas sempre mantendo a postura na frente delas, nunca, jamais demonstrar fraqueza.
Ele não insistiu, percebendo a barreira que eu havia erguido. "E seu pai, Joana? Qual era o papel dele nisso tudo?"
A imagem do meu pai invadiu minha mente: um homem alto e gentil, com um sorriso que antes era um sol e que, com o tempo, se tornou uma sombra pálida. Meu pai... ele tentava. No começo, me levava para ver os patos no lago, inventava histórias mirabolantes antes de eu dormir. Mas depois... depois a luz se apagou.
"Meu pai... ele não estava muito presente", consegui dizer, a voz embargando levemente. "Ele... ele tinha os próprios demônios para enfrentar." Os demônios que minha mãe plantou em nossa casa com suas falas venenosas, suas críticas incessantes. Ele procurou refúgio no álcool, tentando afogar a dor de ser um espectador impotente da destruição da própria família.
"Você se lembra do que aconteceu para ele agir assim? Sabe quais demônios ele enfrentava?" ele perguntou com cautela, como se pisasse em ovos.
Minha testa se franziu, uma pontada aguda de dor pulsando atrás dos meus olhos. Não. Não quero reviver aquilo. Não posso. "Não... as lembranças são vagas. Faz tanto tempo."
Ele percebeu minha evasiva, a forma como meus olhos se fixavam em um ponto qualquer da parede, tentando fugir daquele lugar, daquela conversa. "Você acha que as coisas se intensificaram com a gravidez, Joana? Você pode me falar sobre isso?"
Meu corpo inteiro se enrijeceu. Apertei a pequena bolsa com tanta força que meus nós dos dedos ficaram brancos. Meus olhos percorreram o consultório freneticamente, como se procurando uma rota de fuga. Gravidez? Que absurdo. Não houve gravidez. Houve apenas... a transformação grotesca. Meu corpo... ele começou a mudar, a se curvar em formas estranhas. A perfeição, a única coisa que me dava algum valor aos olhos dela, esvaindo-se como uma miragem.
"Eu... eu não sei do que você está falando", a voz saiu mais firme do que eu esperava, quase agressiva. "Eu nunca estive grávida."
Ele me observou com uma intensidade perturbadora, notando a veemência na minha negação, o brilho fugaz de pânico que cruzou meus olhos. "Você notou mudanças no seu corpo, Joana?"
Hesitei por um instante, lembrei da imagem do meu reflexo no espelho, a curva suave que se formava onde antes havia apenas uma linha definida, assombrando minha mente. Aquela deformidade. Aquilo que estava roubando minha identidade, meu controle. "Foram... foram só uns quilos a mais. Sabe como é, a gente oscila na carreira de modelo."
Ele assentiu lentamente, sem insistir. Eu sabia que ele não acreditava em uma palavra do que eu dizia, mas apreciava sua cautela. Estávamos caminhando em um campo minado. "E foi nessa época que... os sonhos começaram a acontecer?"
Desviei o olhar novamente, minha mente buscando desesperadamente um escape, um lugar seguro onde as vozes não me alcançassem. Sim. Foi quando Clara surgiu. Clara, minha princesa guerreira, forte e amada. No reino de Clara, eu sou a rainha. Eu ditei as regras, eu escolhi os heróis e os vilões. Eu pude dar a ela a infância de contos de fadas que sempre me foi negada.
Um sorriso involuntário curvou meus lábios, um brilho tênue, quase infantil, iluminando meus olhos por um breve instante. "Sim... as coisas mudaram um pouco."
Ele percebeu a mudança sutil em minha expressão, o breve vislumbre de um mundo secreto. "De que forma elas mudaram, Joana?"
Olhei para ele novamente, o sorriso se esvaindo como fumaça, substituído por uma confusão genuína. Como explicar, Paulo? Como dizer que dentro de mim floresceu um universo paralelo, habitado por uma princesa que enfrenta dragões e desvenda mistérios, enquanto eu... eu apenas tento sobreviver a cada dia, tropeçando em fragmentos da minha própria realidade?
"Eu... eu comecei a ter os sonhos... uns sonhos muito reais", tentei disfarçar, soando o mais casual possível.
Ele se inclinou ligeiramente para frente, os olhos fixos nos meus. "Sonhos sobre o quê?"
Sobre um castelo imponente onde uma rainha tirana, aprisiona Clara em uma torre alta e sombria. Sobre um velho sábio exilado que surge nas sombras para guiar Clara em sua jornada. Sobre um cavaleiro que cobiça e corteja Clara mas tenta subjugá-la.
"Ah... sobre... sobre histórias", respondi, sentindo um rubor quente subir pelas minhas bochechas. "Coisas sem importância."
Ele anotou mais algumas palavras em sua prancheta. Eu podia sentir seu olhar analítico, tentando decifrar o código por trás das minhas palavras hesitantes, das minhas evasivas. Sabia que aquele era apenas o primeiro passo em uma longa e tortuosa jornada. A verdade estava lá, soterrada sob camadas de dor e fantasia, e ele estava disposto a cavar até encontrá-la. E eu... eu estava ali, com a silenciosa esperança de finalmente encontrar algum alívio para o peso da minha própria mentira.
"Essas histórias que você chama de sonhos, Joana... você já parou para pensar se elas não seriam uma forma disfarçada de lidar com as suas próprias vivências? Se, de alguma maneira, os personagens e os conflitos desse mundo imaginário não estariam ecoando as suas experiências da infância?" A voz de Paulo era calma, mas carregava uma perspicácia que me deixava desconfortável. Era como se ele estivesse tateando no escuro, mas cada toque parecia perigosamente perto de um interruptor que eu não queria acender.
Senti um arrepio percorrer meus braços, apesar do calor suave do consultório. Ele estava chegando perto demais. Mas a minha mente se agarrava à negação como um náufrago a um pedaço de madeira. "Não sei, Paulo. Acho que você está superinterpretando. São só... devaneios. Uma fuga da rotina, talvez."
Ele manteve o olhar fixo em mim, sem demonstrar incredulidade, mas também sem ceder. "Nossas mentes têm maneiras complexas de processar a dor, Joana. Às vezes, criamos narrativas paralelas para dar sentido ao que foi difícil demais para enfrentar diretamente. Há alguma lembrança específica da sua infância, algum momento que ficou gravado, que essas histórias por acaso te fazem lembrar?"
Uma imagem surgiu em minha mente com uma clareza dolorosa, como se tivesse acontecido ontem. O brilho inclemente de luzes;;, o cheiro enjoativo de spray de cabelo e maquiagem barata, o murmúrio ansioso de outras meninas, todas vestidas como pequenas bonecas de vitrine, e suas mães, com olhares famintos por uma vitória que não era delas. Eu devia ter uns sete anos, talvez oito. Mais um sábado sacrificado no altar da ambição da minha mãe.
"Lembro de um concurso em particular", comecei, a voz carregada de uma melancolia que eu não conseguia disfarçar completamente. "O salão parecia um formigueiro de miniaturas de misses, cada uma com um sorriso forçado e um brilho nos olhos que eu nunca senti de verdade. Algumas pareciam genuinamente empolgadas, talvez sonhassem com aquela coroa de plástico. Mas outras... ah, outras tinham aquele mesmo vazio no olhar que eu via refletido no espelho todas as manhãs. Eram marionetes, Paulo. Assim como eu."
Senti o toque frio e metódico dos dedos da minha mãe em meu rosto, a pressão enquanto ela espalhava a base, o corretivo, o blush. "Ela passava horas me maquiando", continuei, a voz embargando com a lembrança da sua frustração constante. "Ela sempre resmungava sobre meus olhos. Dizia que eram 'apagados', 'sem vida', exatamente como os do meu pai. Dava um trabalho danado, segundo ela, para me deixar 'apresentável'."
A voz dela ecoou na minha memória, cortante e impaciente. "Joana, pare de se mexer! Essa boca precisa ficar perfeita para o batom vermelho. E esses cílios? Parece que você nem passou rímel! Olhe para a Angélica, veja como ela se porta, a elegância em cada movimento. E a Júlia, aquele sorriso... contagiante! Você precisa aprender com elas, Joana. Absorver o que elas têm de melhor e ser superior. Você não está aqui para ser apenas mais uma. Anda, desfile para mim. Agora! Quero ver se você finalmente entendeu!"
A humilhação daquele momento ainda me queimava a pele. "Ela me forçava a calçar aqueles sapatinhos de salto alto, minúsculos e incrivelmente desconfortáveis, e a desfilar por corredores longos e frios, antes dos concursos por horas, sob o olhar avaliador das outras mães, seus sussurros venenosos como picadas de agulha. A cada passo hesitante, a cada tropeço, ela me obrigava a voltar para o início, a refazer tudo até que ela considerasse 'perfeito'.".
Uma lágrima quente escorreu pela minha bochecha, rompendo a barreira que eu tentava manter. "Lembro do momento em que anunciaram meu nome como a vencedora pela primeira vez em um dos concursos. A coroa de plástico barato parecia pesar uma tonelada em minha cabeça, meus pés latejavam em agonia, implorando por descanso... Mas quando meus olhos encontraram os da minha mãe na plateia, havia algo ali que eu raramente via. Uma espécie de... satisfação... Por uma fração de segundo, acreditei que finalmente havia feito algo certo...". Eu me lembro de acreditar ter visto, pela primeira vez, um vislumbre de orgulho em seus olhos frios.
Paulo esperou pacientemente, me dando tempo para processar a emoção que me sufocava. "E sua mãe, Joana? Qual o nome dela? Qual era a profissão dela? Ela tinha outros filhos além de você? Por que você acha que ela te impulsionava tanto nessa direção?"
Respirei fundo, tentando organizar as lembranças fragmentadas. "Minha mãe se chama Joyce, ela nunca trabalhou fora de casa. Pelo menos, não que eu me lembre. Ela sempre deixou claro que 'não nasceu para isso', para as tarefas domésticas, para uma vida comum. O que ela queria... ela queria o reconhecimento, os aplausos, a sensação de ser admirada. Ela tinha sido miss na juventude, uma miss local, da cidade em que morávamos. Mas engravidou de mim muito cedo, aos dezesseis anos. E isso... isso, na mente dela, roubou o seu destino."
A amargura na minha voz era inegável. "Ela repetia incessantemente que, se não fosse por 'aquele erro', por aquela gravidez precoce, ela teria sido Miss Universo. Não havia espaço para dúvidas na sua narrativa. Eu era a correção daquele desvio de rota, a chance de viver o sonho dourado que ela acreditava ter perdido para sempre. Eu era a substituta, a extensão dos seus desejos não realizados, mesmo que eu fosse o resultado da destruição dos sonhos dela."
Fiz uma pausa, sentindo o peso esmagador dessa herança imposta. "Eu não era a Joana. Eu era o troféu que ela nunca conseguiu conquistar."
Paulo inclinou-se ligeiramente para frente, o olhar fixo no meu. "Joana", ele disse, a voz agora carregada de uma seriedade compassiva, "se você sempre foi moldada para ser esse troféu, essa extensão dos sonhos de outra pessoa... o que aconteceu com a menina Joana? Quais eram os sonhos dela? O que ela queria para si mesma, antes que o brilho das coroas ofuscasse tudo?"