Capítulo 4 Paulo - 2. Essa parece ser uma questão...

O último paciente do dia havia se despedido, e o consultório mergulhava naquele silêncio peculiar do final da jornada, um respiro antes do retorno ao mundo exterior. Ana, minha assistente eficiente e observadora, passou pela porta a caminho da saída.

"Boa noite, Paulo. Tudo certo por aqui?"

"Boa noite, Ana. Sim, tudo tranquilo. Só mais alguns minutos para finalizar as anotações da Joana."

Ana parou na porta, um sorriso curioso nos lábios. "A moça da revista, não é? Aquela que chegou tão... tensa."

"Sim, ela mesma", respondi, pegando minha caneta e o caderno com as anotações da primeira sessão de Joana.

"Ela é tão linda, tão magra, mas tem uma disforia corporal tão grande, uma história complexa, imagino", comentou Ana, seu olhar perspicaz captando a atmosfera carregada que ainda pairava no ar.

"Sem dúvida", concordei, assentindo levemente. "Uma sessão intensa. Bem, tenha uma boa noite, Ana."

"Você também, Paulo. Até amanhã."

O silêncio do consultório após a partida de Ana era um mar calmo na superfície, mas agitado em suas profundezas. Sentei-me à minha mesa, o caderno de anotações de Joana aberto à minha frente, e a caneta pairava sobre o papel, hesitante. A imagem daquela jovem mulher, tão bela quanto fragilizada, pairava em minha mente.

Paciente: Joana.

Idade: 22 anos (a completar 23).

Profissão: Modelo (atualmente afastada).

Estado Civil: Casada ("com um safado").

Filhos: Nega, mas sinais físicos sugerem gestação recente.

A complexidade do caso já se revelava nas primeiras sessões. A dor era palpável, mas envolta em camadas de negação e fantasia. A infância sob o jugo de uma mãe controladora e ambiciosa... aquilo gritava por análise. A necessidade de performar, a ausência de permissão para ser criança, a internalização da crítica constante... um terreno fértil para a baixa autoestima e a dificuldade em construir uma identidade autêntica.

"Minha mãe... ela sempre teve uma visão muito clara do que eu deveria ser." A frase ecoava na minha mente. Uma mãe que vivia seus próprios sonhos frustrados através da filha, moldando-a como um troféu, pensei nos meus próprios filhos, felizmente Ricardo e eu jamais seríamos pais assim para os meninos. A ausência de espaço para a individualidade de uma criança, para seus próprios desejos... isso invariavelmente leva a um sentimento de vazio, de não pertencimento à própria vida. A comparação constante com outras crianças, a pressão implacável... que mina a autoestima e fomenta a insegurança.

Será que consigo ajudar essa paciente?

A explosão emocional no final da sessão... aquilo foi um vislumbre da intensidade da dor que ela carregava. A raiva direcionada à revista, à própria imagem idealizada, e o grito sobre a "culpa" da "Clara"... era como se a fantasia e a realidade se fundissem em um momento de angústia avassaladora. Aquela "Clara"... era a filha nos sonhos dela? Uma projeção de si mesma? Uma representação da gravidez? Havia uma vulnerabilidade por trás daquela fachada defensiva, um grito silencioso por ajuda. A disposição em falar sobre a infância era um fio de esperança, um sinal de que, talvez, ela estivesse pronta para começar a desenterrar as raízes de sua dor.

            
            

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