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A raiva fervilhava em minhas veias, um incêndio silencioso que consumia qualquer resquício de paciência que eu ainda tentava cultivar. A cena no consultório... a histeria, os gritos lancinantes, a revista esfarrapada como um símbolo de sua completa desintegração. A vergonha me invadia em ondas quentes, o olhar perplexo de Paulo, a tentativa desesperada de assistente em acalmá-la. Era humilhante, uma exposição crua e dolorosa da nossa vida privada para estranhos.
Eu estava me esforçando tanto. Merda, como eu estava me esforçando. Desde aquele dia infernal, desde a descoberta da... eu tinha tentado ser forte, o pilar que ela precisava. Engolir minha própria dor, o vazio lancinante, e focar em cuidar da minha esposa, em sua espiral descendente. As noites em claro, as tentativas de diálogo que invariavelmente terminavam em lágrimas ou silêncio obsequioso, a paciência forçada diante de suas oscilações de humor. Eu estava exausto, esgotado até a medula.
O caminho de volta para casa foi um purgatório silencioso. Ela no banco do passageiro, o olhar fixo na janela, o corpo tenso e encolhido. Eu ao volante, os dedos brancos de tanto apertar o volante, a mandíbula travada para conter as palavras que lutavam para sair. Não trocamos uma única palavra. O silêncio era um muro de gelo entre nós, intransponível, carregado de acusações não ditas e ressentimentos mútuos.
Assim que a porta do apartamento se fechou, o silêncio opressor pareceu se intensificar. Ela ficou parada no meio da sala, de costas para mim, os ombros curvados sob um peso invisível. Esperei, com uma ponta de esperança de que ela finalmente quebrasse o silêncio de uma forma diferente, que talvez reconhecesse a humilhação que nos havia infligido.
Mas então ela se virou, os olhos vermelhos e inchados, a voz carregada de uma acusação que me pareceu tão injusta quanto dolorosa. "Você não vai falar nada? Não vai nem olhar na minha cara? É isso? Eu sou um monstro tão grande assim para você?"
Um turbilhão de lembranças me invadiu naquele instante. A imagem nítida e nauseante dela caída no chão do quarto, bêbada e com vômito a sua volta, o cheiro acre de álcool misturado à bile, a fragilidade de seu corpo dopado. Aquele era o monstro que eu via, a mulher que, em seu desespero egoísta, tinha se auto destruído.
A raiva, que eu tanto me esforçava para conter, ameaçou transbordar. Mas tentei respirar fundo, agarrando-me ao fio tênue da minha promessa de apoiá-la. "Joana, eu só..."
Mas ela não me deixou terminar. Sua voz se elevou, estridente e acusatória. "Você sempre faz isso! Me olha como se eu fosse um erro, como se eu tivesse destruído tudo sozinha! Você se acha tão bom, tão perfeito! Me faz sentir pequena, inútil!"
A injustiça de suas palavras me atingiu como um soco. Eu, que estava me afogando em minha própria dor, tentando desesperadamente mantê-la à tona, era agora o vilão da história. A paciência que eu tanto me esforçava para ter começou a se esgarçar.
"Como você acha que você me faz sentir, Joana?", a voz saiu mais áspera do que eu pretendia. "Eu estou aqui, tentando lutar por nós dois! Tentando entender o que aconteceu, te dar apoio para superar isso! Mas você não enxerga! Você só vê a sua própria dor! E a minha? E a minha dor? Isso não significa nada para você?"
Ela riu, uma risada amarga e cortante. "Você falando de dor? Você está sofrendo? Você é quem está me fazendo sofrer! Com esse seu olhar de superioridade, com esse seu silêncio acusador!"
As palavras dela foram como um golpe devastador. A acusação injusta, a inversão da culpa, a completa cegueira para o meu próprio sofrimento. Era como se ela quisesse me afogar em sua própria miséria, me culpando por algo que ela havia decidido sozinha. A máscara de protetor que eu tanto me esforçava para manter finalmente se estilhaçou.
"Você me fez passar uma vergonha inacreditável, Joana!", as palavras jorraram da minha boca, carregadas de uma raiva fria e controlada. "As pessoas viram você daquele jeito, histérica, rasgando uma revista sua! Eu estou me esforçando tanto para te apoiar, para ter paciência, mas você não ajuda! Eu estou tentando lutar por nós, mas preciso de você!"
Ela recuou um passo, o rosto contorcido pela dor e pela raiva. "Lutar por nós? Você só está lutando pelo seu ego ferido! Você nunca me amou de verdade! Sempre se achou bom demais para mim!"
Aquelas palavras ecoaram no silêncio do apartamento, carregadas de um gosto amargo. Havia um abismo entre nós, cavado pela dor, pela incompreensão e, talvez, pela falta de um amor genuíno que pudesse superar tudo aquilo, eu a amava, mas já não achava mais que isso seria tudo...
Sem dizer mais nada, virei as costas. A discussão havia drenado a última gota de energia que eu tinha. Não havia mais nada a dizer, nada que ela pudesse ou quisesse ouvir. Peguei as chaves do carro na mesa da sala e caminhei em direção à porta.
No elevador, enquanto descia os andares, a solidão me envolveu como um manto pesado. A imagem de Joana, sozinha e furiosa no apartamento, me assombrou. Eu estava cansado de lutar uma batalha sozinho. Cansado de tentar protegê-la de si mesma e das consequências de suas próprias escolhas.
No impulso de um desespero silencioso, peguei meu celular e procurei um número. A voz hesitante do outro lado da linha atendeu no terceiro toque.
"Thales? Está tudo bem, meu querido?", a voz de Joyce soou no meu ouvido, um timbre que sempre me causava um arrepio sutil. Havia uma doçura forçada em seu tom, uma máscara de preocupação que nunca me enganou completamente.
"Oi, Joyce", respondi, a voz rouca e cansada. "Estou... tentando. Fiz com que a Joana procurasse ajuda profissional. Mas as coisas não estão fáceis."
Um suspiro impaciente ecoou do outro lado da linha. "Ah, Thales. Essa menina sempre foi tão dramática. Cinco meses já se foram! Ela precisa superar isso, voltar para a academia e emagrecer. Imagina quanto trabalho ela já perdeu por causa dessa... dessa fase."
A insensibilidade de Joyce me atingiu como um tapa. Cinco meses. Cinco meses de escuridão para Joana, de uma dor que parecia consumi-la por dentro. E para Joyce, era apenas uma "fase", algo a ser superado com uma dieta e exercícios. A imagem dela em um enterro a alguns anos invadiu minha mente: vestida como se fosse para um desfile de moda, o rosto impecável, sem uma lágrima sequer, tão fria e distante quanto um iceberg.
"Joyce, não é só uma fase", tentei explicar, a frustração crescendo em meu peito. "A Joana precisa de ajuda de verdade. Ela está sofrendo. Eu a vi hoje... ela estava completamente... descontrolada."
"Descontrolada? Thales, por favor. Ela sempre soube como chamar atenção. Talvez se você fosse um pouco mais firme..."
"Firme?", interrompi, a raiva começando a borbulhar. "Eu estou tentando ser firme, Joyce! Mas ela precisa de compreensão, não de mais pressão! Ela perdeu... nós perdemos... Isso não é algo que se supera com uma ida à academia!" A dureza em minha voz a silenciou por um instante.
"Eu sei, meu querido, eu sei", ela disse finalmente, o tom um pouco mais suave, mas ainda carregado de uma impaciência subjacente. "Mas ela precisa reagir. Quanto mais tempo ela ficar se lamentando, pior vai ser. Eu vou tentar conversar com ela, colocar um pouco de juízo nessa cabeça."
"Por favor, Joyce", pedi, a voz agora suplicante. "Tente ser... doce com ela. Ela está muito fragilizada. Ela precisa sentir que tem apoio, que alguém a entende."
Um silêncio breve se seguiu. "Vou tentar, Thales. Por você. E por ela, claro. Mas você sabe como a Joana pode ser teimosa."
Ela então mudou de assunto abruptamente. "E o seu trabalho, querido? Tudo correndo bem? Aquela campanha internacional finalmente saiu?"
Cortei a conversa o mais rápido que pude. "Está tudo bem, Joyce. Preciso ir agora. Obrigado por ouvir." Desliguei antes que ela pudesse insistir, o som da sua voz melosa me dando calafrios.
No carro, a cidade cintilava ao meu redor, mas meus pensamentos estavam presos em um ciclo vicioso de culpa e frustração. Eu estava tentando. Merda, eu realmente estava tentando. Tinha feito o que todos esperavam, a tinha levado a um psicólogo com boas indicações, tinha engolido minhas próprias mágoas e tentado ser um marido compreensivo e paciente. Mas a cada passo que eu dava em direção a ela, parecia que ela se afastava dois.
A imagem de Joana gritando no apartamento, os olhos marejados de raiva e dor, me assombrava. Suas palavras ecoavam na minha mente, acusatórias e ferinas. "Você se acha tão bom! Me faz sentir pequena!" Era irônico. Eu me sentia cada vez menor diante da sua dor, impotente para ajudá-la, para nos ajudar, eu estava diminuindo o que eu sentia para poder salvá-la.
Talvez eu devesse tentar mais um pouco. Talvez, com o tempo, a terapia fizesse efeito, talvez ela começasse a enxergar o meu esforço, a minha dor. Havia momentos, raros e fugazes, em que eu lembrava da mulher por quem me apaixonei, a garota doce e tímida. Será que aquela Joana ainda existia em algum lugar, soterrada sob camadas de sofrimento e culpa?
Meu celular vibrou no console. Uma mensagem, vi quem era, vi o conteúdo breve e direto. Uma pergunta. Uma porta entreaberta para um caminho diferente.
Hesitei por um instante... tudo gritava para que eu ficasse, para que eu lutasse. Mas havia também o cansaço, a exaustão de uma batalha que parecia perdida, a amarga constatação de que talvez o amor que nos uniu tivesse se esvaído, deixando para trás apenas ressentimento e incompreensão.
Com um suspiro pesado, digitei uma resposta curta e enviei.
"Sim."