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O campo era sua casa, sua rotina, seu mundo inteiro. Aos seis anos, Evelin já carregava baldes d'água da nascente até o vilarejo, com passos pequenos, mas firmes. O povoado de Thariel, onde nasceu, ficava entre vales cobertos por bosques densos e montanhas com picos nevados que reluziam sob o sol no Reino de Veridia. Era uma terra de abundância e harmonia, governada com justiça pela soberana Oriana, uma mulher de espírito forte e olhar compassivo, reverenciada por sua sabedoria e pela conexão profunda com as forças da natureza.
Ali, homens e mulheres partilhavam os deveres – do campo à criação, da política às artes. Havia desentendimentos, como em qualquer sociedade viva, mas nenhum gênero era subjugado.
A vila fervilhava de vida e cores. Evelin corria entre as tendas do mercado livre, onde especiarias, tecidos e encantos naturais eram trocados como moedas. Os elementais - seres que dominavam os poderes da natureza - eram respeitados, e vez ou outra mostravam suas habilidades para divertir as crianças ou acalmar uma tempestade precoce. Sua avó, Elsha, era uma delas. Dominava o fogo, mas com doçura e controle. Era a ela que Evelin mais ouvia, fascinada por cada história sobre as lendas dos Duplos - aqueles que uniam dois elementos - e dos Deturpadores, os raríssimos que podiam manipular memórias, imagens, e até reanimar os mortos.
Aos dez anos, Evelin já manejava o arado com os braços fortes de quem crescera na terra. Ela era bonita de uma forma que não passava despercebida - cabelos ruivos que pegavam fogo ao sol, olhos verdes que pareciam enxergar a alma das coisas. Mas o que mais chamava atenção era seu espírito. Não aceitava ordens injustas, questionava tradições absurdas e levantava a voz quando necessário. Isso lhe valia olhares atravessados, mesmo naquele tempo de igualdade.
Um dia antes de completar doze anos, Thariel festejava o Festival das Luzes, uma celebração de agradecimento às colheitas e à magia vital que mantinha o mundo em equilíbrio. O céu estava coberto por lanternas flutuantes, as risadas ecoavam entre danças circulares e instrumentos rústicos. Evelin observava tudo com alegria e reverência. Era a última vez que o mundo seria pleno.
Na manhã seguinte, Oriana foi traída. O general Vermon, seu antigo conselheiro, desferiu o golpe final, ceifando sua vida e assumindo o trono com sangue e feitiçaria. Naquele mesmo instante, lançou um encantamento profundo sobre o povo: todos esqueceram Oriana, esqueceram os séculos de equilíbrio e passaram a acreditar que Vermon sempre reinara. Todos... menos Evelin. Por alguma razão que nem ela compreendia, sua mente permaneceu intacta. A lembrança de Oriana viva, sorrindo no palácio de raízes encantadas, jamais se apagou.
Iniciava-se ali a Era de Vernon. As leis mudaram rapidamente. Mulheres foram confinadas aos lares, proibidas de estudar ou de praticar qualquer tipo de magia. Seus nomes foram apagados dos registros públicos. O que antes era uma terra próspera, agora mergulhava em silêncio e medo.
Aos quatorze anos, Evelin já aprendera a se calar. Guardava para si as lembranças proibidas e os ódios que começavam a fermentar em seu peito. Mas foi nesse mesmo ano que ocorreu o primeiro incidente. Enquanto lavava panos no riacho, a água começou a girar ao redor de seus braços como serpentes líquidas. Assustada, tentou afastá-la, e com um grito, o rio retrocedeu por alguns segundos, revelando o leito seco e pedregoso. Ela caiu de joelhos, tremendo, mas ninguém vira. Aquilo era impossível, ela já passara da idade de manifestação de poderes. Ou seria... magia?
Sabia dos riscos. Os soldados do rei caçavam qualquer sinal de poder não autorizado. Os únicos poderes permitidos eram os elementais, usados para tarefas diárias - mas apenas por aqueles escolhidos pelo rei. O povo comum era proibido de manifestá-los sem autorização. Principalmente os Duplos. E mais ainda, os que diziam haver nascido com "a centelha primordial" - fragmentos de todos os poderes elementares, uma heresia na nova era.
Com dezoito anos, o segundo incidente foi inevitável. Um incêndio acidental se espalhou por uma casa no vilarejo. As pessoas gritavam, e antes que percebesse, Evelin correu em direção às chamas. Não entendia o que fazia, apenas sentia. Ao erguer as mãos, o fogo recuou como se obedecesse, formando um corredor até a criança presa no centro da casa. Salvou-a, e depois fugiu, com o rosto coberto. A aldeia chamou de milagre. Mas ela sabia a verdade: o fogo a obedecia.
Aos vinte e dois, um terceiro despertar. Durante uma tempestade, relâmpagos rasgavam o céu. Um grupo de soldados havia invadido uma vila vizinha, e ela presenciou a cena de longe. Sem controle, o vento se ergueu em sua volta, e num piscar de olhos, os soldados foram lançados metros longe, como folhas em redemoinho. O medo a dominou. Se descobrissem quem ela era, a caça começaria.
Evelin agora vigiava cada passo, cada emoção. Mas já não era a mesma. Dentro dela crescia a centelha dos tempos antigos - dos verdadeiros soberanos. O sangue de Oriana não corria em suas veias, mas seu espírito pulsava ali, vibrando com os elementos da terra. E ela sabia: um dia, não seria mais possível se esconder.
No horizonte, a aurora trazia o sussurro do que estava por vir. O tempo de silêncio acabaria. E com ele, nasceria a faísca da revolução.