Capítulo 3 A Centelha e o Vento

O vento de Thariel soprava diferente naquele verão. Evelin já completara vinte e três estações, mas em sua alma, o tempo parecia andar em círculos. A lembrança da traição de Vermon, do esquecimento coletivo, da queda de Oriana - tudo ainda queimava com nitidez dentro dela, como um livro que ninguém mais podia ler. Mesmo após tantos anos, mantinha a farsa de jovem comum: trabalhava nas plantações, cuidava da avó doente, e evitava ao máximo chamar atenção. Mas seu mundo interior era vasto, denso e mágico.

Desde os episódios com a água, o fogo e o vento, Evelin treinava em segredo. À noite, se afastava para os limites da floresta, onde deixava o poder fluir em silêncio. Aprendera a erguer paredes de pedra, a guiar o fogo sem queimar, a respirar sob águas profundas e a mover folhas com o sopro da mente. Sabia que isso não era apenas raro - era impossível, segundo os registros da Nova Era.

A centelha primordial. Era como chamavam, em sussurros de lenda, a presença de todos os elementos em um único ser. Diziam que apenas uma alma a cada milênio poderia abrigar tal poder. Evelin não queria acreditar, mas os sinais estavam lá, um por um.

O regime de Vermon continuava a se fortalecer. Os soldados da Névoa, como eram chamados os agentes que buscavam usuários não autorizados de magia, tornavam-se cada vez mais cruéis. Um simples boato de que alguém conjurara água para aliviar a sede já era suficiente para exílios ou execuções.

Na superfície, a vida seguia. Mas o subsolo de Thariel - emocional e literal - começava a se agitar. A cada ano, mais pessoas pareciam... desconfortáveis. Algo em seus olhos mostrava lacunas. Eram olhares que buscavam uma lembrança esquecida. Um nome que não vinham mais à mente. A imagem de um palácio que ninguém sabia se existiu.

Evelin notava isso. No carpinteiro que pausava o martelo olhando o horizonte. Na mulher que trançava os cabelos da filha murmurando uma canção que ninguém ensinara. Nas crianças que brincavam com folhas dançando ao vento, sem saber por quê.

E então, ele chegou.

O forasteiro. Chamava-se Eros, diziam aqueles que sussurravam pelos cantos. Vestia-se como um dos muitos mensageiros da coroa, mas havia algo em seus gestos - e no modo como evitava os soldados da Névoa - que denunciava sua inquietação. Disfarçado, entrou em Thariel com a desculpa de mapear o fluxo de mantimentos, mas Evelin soube, desde o primeiro encontro de olhos, que ele buscava mais.

Ela o observou à distância por dias. Ele caminhava como se soubesse onde pisava, mas hesitava diante de encruzilhadas antigas e monumentos esquecidos. Certo dia, ela o viu perto do mercado, escutando com atenção uma anciã que falava sobre as canções que os ventos levavam. Noutro, perto dos campos, ele fitava a silhueta da floresta com o cenho franzido, como se ouvisse vozes que ninguém mais ouvia.

Curiosa, Evelin começou a segui-lo em silêncio. Usava sua afinidade com o ar para abafar os passos, escondia-se entre os arbustos, mantinha-se longe o bastante para não ser notada, mas perto o suficiente para ver os pequenos gestos. Ele levava um caderno, onde anotava símbolos antigos, marcas em pedras, e murmurava para si em uma língua que ela não conhecia.

Até que numa manhã, ele se afastou da vila. Evelin seguiu. Cruzaram trilhas de caça abandonadas, raízes cobertas de musgo e árvores tortuosas. Por fim, chegaram ao velho campo de pedras cerimoniais - um local que poucos lembravam, mas que ela conhecia bem.

Eros se ajoelhou diante de uma rocha coberta de entalhes. Seus dedos traçaram o símbolo de Oriana, com reverência.

- Onde aprendeu esse símbolo? - perguntou Evelin, surgindo atrás dele como um sopro de vento. Sua voz era firme, mas seu coração batia rápido.

Eros virou-se lentamente. Não pareceu surpreso.

- Sonhei com ele. E quando acordei... sabia onde encontrá-lo.

Ela estreitou os olhos. Ninguém sonha com Oriana, não mais. Pensou Evelin.

Ele sorriu de lado, um sorriso triste.

Houve silêncio. O vento soprou entre as pedras. Evelin sentia um magnetismo estranho vindo dele. Não era apenas um mensageiro. Havia algo adormecido em Eros - algo que nem ele compreendia.

- Você é da Névoa? - arriscou ela.

Ele balançou a cabeça.

- Fui treinado por eles. Mas nunca fui um deles.

- Então o que procura aqui?

Eros a encarou com seriedade.

- Respostas. Há um vazio dentro de mim. Lembranças ausentes. Vozes que ecoam quando estou só. E há um nome... queima nos meus sonhos. Oriana.

A palavra pairou entre eles. Pela primeira vez em muitos anos, Evelin sentiu que não estava sozinha. Não completamente.

Ela continuou olhando para ele por um bom tempo antes de lhe dar as costas e partir, o deixando sozinho campo de pedras cerimoniais.

Naquela noite, ela voltou à floresta. Mas não para treinar. Sentou-se sob a antiga árvore de raízes espiraladas, onde sua avó contava histórias sobre os antigos guardiões do equilíbrio. Pela primeira vez em muitos anos, Evelin chorou.

O mundo havia se esquecido.

Mas a memória começava a despertar.

E com ela, o fogo da rebelião começava a crepitar nas sombras.

            
            

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