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Estava chegando ao final de abril, já se passaram três meses, esse ano tudo parecia acontecer muito rápido. Era o segundo intervalo do dia. Joana estava sentada num banco ao lado do pátio, os fones enfiados nos ouvidos, mas sem música tocando. Ela só precisava de um espaço para respirar. Esses primeiros meses estavam sendo mais intensos do que ela imaginava. E sempre estavam precisando se lembrar das regras da amizade que criaram quando Tarso fez 15 anos. Era como um ritual entre eles.
Joana estava com o lanche na mão - pão de queijo e chá gelado de limão - quando sentiu a presença ao seu lado. Ele apareceu com o cabelo ainda bagunçado depois da aula de luta e um pacote de biscoito aberto. - Se eu sentar aqui, você divide o pão de queijo? - perguntou já se acomodando sem esperar resposta, ele não precisava de permissão, para estar ao seu lado. Ela tirou um dos fones e fingiu implicância. - Regra número um da nossa amizade: não dividir comida quando o outro trouxe a própria. - Que bom que eu nunca segui regra nenhuma - ele disse, pegando descaradamente um dos pãezinhos da bandeja dela. - Você tá quebrando a sua própria regra, idiota - ela resmungou, mas nem tentou impedir. Já tinha aceitado que o mundo inteiro era buffet livre pra ele. Eles riram. Aquilo era velho, parte da rotina. Mas por algum motivo, naquele dia, parecia diferente, tudo parecia acontecer de forma diferente entre eles, as coisas simples que faziam passou a ter um peso maior, ela tentava se convencer que era porque ele ia estudar fora. - Regra número dois - Tarso continuou, encostando-se no banco com os braços abertos a abraçando pelos ombros,ele adorava ficar bem perto para sentir o perfume dela: nada de falar de sentimentos perto de prova. Dá azar. Joana arqueou uma sobrancelha. - Você só fala isso porque fica todo sentimental quando tá ansioso. - E você fica muda. Pior ainda. Ela mordeu o lábio para segurar o riso, mas por dentro sentia aquele conhecido calor subir. Era sempre assim. Um comentário bobo, um olhar que durava mais do que devia, e o mundo parecia balançar só entre os dois. E ele se sentiu incomodado a vendo morder o lábio, quando ele gostaria de fazer aquilo. - Regra número três - ela disse, olhando para ele com aquele sorriso meio torto que só ela sabia fazer: nada de se apaixonar. Nunca. Tarso fingiu levar a regra a sério. Levantou as mãos como quem jura fidelidade. - Essa é a mais importante. Tá anotado em pedra. Mas, naquele instante, olhando para ela com as bochechas coradas, ele soube que já tinha quebrado essa regra há muito tempo, na verdade foi por já estar apaixonado que ele criou a regra. E Joana? Joana também sabia. Só que os dois fingiam não sentir. Era mais seguro assim, por enquanto. O vento passou bagunçando os fios do cabelo dela, fazendo vir para frente de seu rosto, e ela sentiu o olhar dele pousado ali, demorado demais. Tarso passou os dedos em seu rosto tirando o cabelo dali e tocando de leve em seus lábios, o silêncio foi cortante, por um segundo a mais do que devia. - Essa é a regra de ouro, né? - ele disse, mais sério do que o habitual. Joana desviou os olhos, mexendo na própria saia como se aquilo fosse à coisa mais interessante do mundo. - Se a gente quebrar essa regra estraga tudo. - Então a gente não quebra - ele concluiu. Mas nenhum dos dois parecia convencido. Tarso levantou e foi embora sem olhar pra trás. Ele não estava conseguindo se segurar, precisa arrumar uma distração rapidamente. Joana ficou ali, sozinha, ouvindo o silêncio nos fones de ouvido. E pela primeira vez, desejou que as regras não existissem. Ele ainda estava atravessando o pátio quando o celular vibrou no bolso. Ele pensou em ignorar, mas viu o nome na tela: "tia alicia". Era raro ela mandar mensagem pra ele, sempre mandava os recados por sua princesa ou por sua mãe. Ele leu rápido. Tia Alicia Oi, querido, será que você pode levar a Joana e o Jamal para casa hoje? O pai deles está preso no trabalho e eu tive que resolver uma emergência no hospital. Ela está sem bateria, então não a avisei. Obrigada, você é um anjo! Tarso Claro, tia! Levo eles! De nada. Tarso respondeu de forma positiva, mesmo sem saber ainda o horário que Jamal saía da escola. Mas não era seria difícil descobrir, Joana tinha a resposta com certeza. Voltou até Joana, que continuava sentada no mesmo banco, agora com os olhos fechados e a cabeça encostada na parede. - Os planos mudaram - ele disse, parando em pé à frente dela. - Como assim? - Tua mãe me mandou levar você e o Jamal pra casa. Ela está enrolada no hospital. Você tá sem bateria, né? Ela arregalou os olhos e automaticamente pegou o celular na mochila, apertando o botão lateral. Tela preta. - Droga. Sabia que tinha esquecido alguma coisa hoje. Mas... Sério que ela te avisou? - Tia Alicia mandou uma mensagem direta. Estou praticamente contratado como motorista da família. Joana riu e se levantou. Ele era alto, então ela alcançava no máximo os ombros dele. - Só falta agora à gente aproveitar e dar uma volta por aí, né? Tarso levantou uma sobrancelha, como quem topa qualquer coisa. - Um cinema? - ele sugeriu. - Você tem poderes de telepatia, está lendo meus pensamentos? Joana ainda estava pensando na maneira que ele havia lhe tocado há minutos atrás e em como ele era lindo. Seus olhos eram o sol dela, seus braços eram o seu mundo. Eles foram caminhando de dedinhos dados até suas respectivas salas de aula, claro que ele a deixou primeiro, foi suspirando pelo corredor da mesma forma ela entrou na sala. No final da tarde ele esperou ela no corredor e caminharam juntos até o carro, ainda faltava meia hora para saída do caçula, e seria o tempo do trajeto até a escola dele, esse horário tinha um pouco de transito e eles não se importaram porque foram ouvindo e cantando a playlist que eles compartilhavam, as músicas sempre falavam sobre um amor impossível, inocente, que os deixam sem chão. Ela olhava de soslaio e ele pelo retrovisor, foram de mãos dadas durante todo trajeto. Encontraram Jamal perto da quadra, brincando de trocar figurinhas com um amigo. Ele comemorou quando ouviu que iam ao cinema - escolheu o filme na hora, o de monstros que ele tanto falava fazia dias. Nem deu tempo de Joana ou Tarso opinarem. Estava decidido. Na sala escura, os três se acomodaram na fileira do fundo. Jamal logo se afundou na poltrona com um balde de pipoca no colo, totalmente absorto. Joana e Tarso ficaram lado a lado, dividindo a pipoca e o refrigerante. E ali, no meio da sessão, como quem não precisava mais fugir de nada, ela deitou a cabeça no ombro dele, e ele envolveu os braços ao redor dos ombros dela, num gesto já velho conhecido. Assistiram ao filme abraçados como namorados. Mas sem ser. Ainda não. Eles tinham esse costume. Como quando andavam pela rua, de mãos dadas só pelos dedos mindinhos - porque, segundo Joana, dar a mão inteira era coisa de casal de verdade. Mas sempre que estavam no carro a sós ficavam de mãos dadas. Como fizeram antes de pegar o Jamal. E eles, apesar de tudo, ainda eram "só amigos". De um jeito bagunçado, intenso e cheio de regras e sentimentos não ditos. Quando o filme acabou, Jamal saiu na frente, animado, contando todas as cenas como se ninguém mais tivesse visto. Joana e Tarso caminhavam atrás, no ritmo deles. - Ele vai dormir falando dos monstros - ela disse, com um sorriso leve. - Vai. E vai te obrigar a ver de novo semana que vem - ele respondeu. - Se for com você, não reclamo. Tarso olhou pra ela de lado. Suas mãos estavam entrelaçadas não só os dedos mindinhos, quase sem perceber. E, por algum motivo, aquele gesto mínimo parecia mais íntimo do que um beijo inteiro. Caminharam em silêncio por alguns minutos. E naquela quietude confortável, ambos sabiam: talvez eles estivessem mesmo quebrando regras. Mas não era o fim do mundo ou era?