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Kemal Arslan voltou três vezes naquela semana.
Não eram visitas longas, nem seguidas de palavras doces. Ele entrava, pedia o mesmo café sem açúcar, sentava na mesma mesa perto da janela e observava. Observava o vai e vem dos clientes, o ritmo da cidade lá fora, mas principalmente... observava Elif Yaman.
Ela fingia indiferença, mas cada vez que ele surgia pela porta, sentia o coração apertar no peito - como se algo estivesse prestes a acontecer. Elif nunca tivera tempo para paixões. A vida sempre a mantivera ocupada demais tentando sobreviver. Amor, para ela, era coisa de novela ou de gente que podia escolher.
No terceiro dia, ela foi direta:
- Você está tentando me convencer de quê, exatamente? Que é gente comum?
Kemal ergueu os olhos do celular e respondeu sem hesitar:
- Estou tentando me convencer de que posso gostar de alguém sem me assustar.
Ela franziu o cenho. Não esperava por aquilo. Estava pronta para ouvir ironias, elogios vazios, ou algum convite ofensivo disfarçado de charme.
Mas aquele homem... parecia carregar uma tristeza que ela conhecia bem. Uma melancolia silenciosa, como a de quem viveu muitas noites em claro.
Ele voltou a tomar o café.
- Este lugar - disse, depois de um tempo - tem gosto da minha infância. Café amargo. Louça lascada. Cheiro de comida de verdade. Silêncios desconfortáveis.
Ela sorriu, cruzando os braços.
- Então você teve infância?
- Tive. Foi curta. E difícil. Como a maioria das infâncias turcas.
Ela sentou à frente dele, pela primeira vez. Havia poucos clientes no salão, e os mais antigos estavam entretidos em jornais e conversas sobre futebol.
- Me conta - ela pediu, sem sorrir. - Como alguém sai de vender coisas no metrô para ter jato particular?
Kemal encostou-se na cadeira e observou o rosto dela. Não havia ironia na pergunta. Apenas curiosidade honesta. E isso, vindo dela, doía mais do que qualquer bajulação que recebia todos os dias.
- Eu programava em lan houses, depois da escola. Usava computadores velhos, roubava sinal de Wi-Fi do vizinho. Aos 17, montei um aplicativo de controle financeiro pessoal. Aos 21, vendi a primeira versão por migalhas. Aos 25, criei do zero o que hoje é a Arslan Tech.
- E nunca mais olhou pra trás? - ela perguntou.
Ele hesitou.
- Olhar pra trás me assombra. Mas esquecer seria me trair.
Silêncio.
Ela se levantou, pegou o pano de prato no balcão e começou a limpar uma mesa próxima. De costas para ele, disse:
- E por que agora resolveu olhar pra cá?
Ele não respondeu de imediato. Só depois que ela se virou novamente, ele murmurou:
- Porque aqui, pela primeira vez em anos... meu coração desacelera.
Elif prendeu a respiração. Era o tipo de frase que podia desmontar qualquer mulher. Mas ela não era qualquer uma. Ela era feita de perdas, de noites viradas, de boletos e de remédios. Estava cansada demais para flertar. E esperta demais para cair.
- Seu coração desacelera porque aqui ninguém espera nada de você - disse ela, dura. - Isso passa. Vai cansar. Vai enjoar. E aí você volta pro seu mundo de ouro e esquece que isso aqui existe.
Kemal se levantou, puxou a carteira, colocou dinheiro suficiente para pagar o café de uma semana.
- Pode ser - ele disse, encarando-a com calma. - Mas eu vou continuar voltando. Até você me mandar embora de verdade.
Ela não respondeu. Mas quando ele saiu, as mãos dela tremiam um pouco.
Nos dias que se seguiram, ele passou a chegar sempre no mesmo horário. Às vezes só olhava. Às vezes falava pouco. Ela dizia que ele era teimoso, inconveniente. Ele dizia que ela era orgulhosa, cruel. Eles discutiam sobre política, música, religião. Elif se recusava a aceitar caronas. Kemal se recusava a ir embora cedo.
E ali, entre pratos sujos e café ralo, algo começou a nascer. Frágil. Escondido. Mas real.
Na última sexta-feira do mês, ela trouxe dois copos de chá e se sentou sem pedir licença.
- Por que você ainda vem aqui, Kemal?
Ele a olhou, como se aquela fosse a pergunta mais importante que já ouvira.
- Porque você é a única pessoa que me olha como se eu ainda fosse aquele menino de Bağcılar. E talvez... seja exatamente isso que eu preciso.
Ela desviou os olhos. O chá esfriava. O rádio tocava uma canção melancólica.
E pela primeira vez desde que o conheceu, Elif sentiu medo de gostar.