Capítulo 3 Passados Invisíveis

O sol de Istambul já se escondia atrás das mesquitas quando Elif retirou o avental e pendurou atrás da porta. Era sexta-feira, o movimento da cafeteria começava a diminuir, e os últimos clientes saíam comentando o tempo e as eleições. Elif lavava as últimas xícaras quando ouviu a voz dele atrás de si.

- Você disse que não saía com clientes.

Ela se virou devagar, olhos semicerrados.

- E eu continuo não saindo.

Kemal arqueou uma sobrancelha, o canto da boca erguido em um quase sorriso.

- Então vou parar de ser cliente. A partir de hoje, só passo pra olhar você e não peço nada.

Ela segurou uma risada, balançando a cabeça.

- Isso é assédio, sabia?

- Só se você disser não. E você ainda não disse.

Elif suspirou. Havia algo nele que a desarmava, mesmo quando ela tentava manter a muralha erguida. Ele não insistia com arrogância. Ele esperava com paciência. E isso, para alguém como ela - acostumada a ser esquecida - era mais perigoso do que qualquer jogada direta.

- Uma hora. E nada de restaurante chique - disse, finalmente. - Um lugar público, simples. Se me levar pra um carro preto com motorista, eu volto andando.

Kemal sorriu, genuinamente. Era a primeira vez que ela dizia sim.

- Confie em mim.

- Ainda não. Mas posso tolerar sua presença por sessenta minutos. E nem um segundo a mais.

Elif saiu quinze minutos depois. Trocou o tênis por uma bota marrom gasta e prendeu os cabelos com um lenço floral. Levava um casaco velho de lã e um olhar atento. Não sabia se estava animada ou à beira do colapso.

Kemal a esperava do outro lado da rua, encostado num carro qualquer, um hatch cinza alugado. Sem chofer, sem vidros fumê. Só ele, de jaqueta simples e jeans escuros.

- Que milagre - disse Elif. - Um bilionário num carro de gente normal.

- Gente normal não é o problema, Elif. O problema é que, às vezes, a gente esquece que já foi.

Ela entrou sem dizer mais nada. Ele ligou o rádio, e uma canção antiga do Tarkan começou a tocar baixinho. Os dois permaneceram em silêncio durante boa parte do trajeto, enquanto o carro atravessava bairros antigos de Istambul.

- Onde estamos indo? - perguntou ela, finalmente.

- Um lugar que eu visitava quando não queria pensar em nada - respondeu ele. - Quando precisava lembrar quem eu era.

Elif olhou pela janela. Passaram por avenidas iluminadas, por praças cheias de crianças, por vendedores de castanhas e famílias sentadas em cadeiras de plástico. A cidade viva pulsava ao redor deles.

Quando finalmente pararam, estavam diante de uma pequena marina em Üsküdar, longe do agito turístico. O mar estava calmo, e pequenas embarcações dançavam suavemente nas águas escuras. Ali, tudo era silêncio e brisa salgada.

- Aqui? - perguntou Elif, surpresa.

- Aqui. Você disse lugar simples.

Caminharam até um banco de pedra. Sentaram lado a lado, sem pressa. O vento batia de leve nos cabelos dela, e Kemal tirou do bolso dois copos térmicos.

- Chá. Sem açúcar. Achei que você ia aprovar.

Ela pegou o copo e assentiu, sem disfarçar o leve sorriso nos lábios.

- E então? - disse. - Vai me contar mais sobre o garoto de Bağcılar?

Ele inspirou fundo. Olhou o mar. A voz saiu mais baixa do que de costume.

- Minha mãe limpava casas. Meu pai era açougueiro, mas ficou doente cedo. Tinha insuficiência renal. Morreu quando eu tinha 13. Depois disso, vendi de tudo. Água, sorvete, jornal. Larguei a escola por um ano inteiro pra ajudar minha mãe. Depois voltei. Estudava à noite, trabalhava de dia. Programava de madrugada.

Elif não disse nada. Só ouvia. Com atenção de quem entende.

- Nunca fui bom em pedir ajuda. Nem em confiar. Fiz tudo sozinho. E cada vitória doeu mais do que parece. Todo mundo acha que enriquecer resolve tudo... mas às vezes, só amplia o silêncio.

Ela virou-se para ele.

- Você tem alguém?

Kemal hesitou. Olhou para as mãos, depois para o mar.

- Tive. Algumas. Mas nenhuma ficou. Dizem que sou frio demais. Ou ocupado demais. Ou que meu mundo é grande demais pra alguém entrar.

- E talvez seja mesmo - disse Elif, com sinceridade.

Ele sorriu, triste.

- É. Mas quando olho pra você... tudo parece menor. Mais fácil. Mais possível.

Elif se levantou, caminhou até a mureta de pedras e apoiou os braços ali. Ficou olhando o mar. O silêncio entre eles agora era confortável, não mais uma barreira.

- Meu pai teve um AVC há três anos. Não anda mais. Minha mãe foi diagnosticada com Alzheimer no ano passado. Estou sozinha com os dois - ela disse, como se contasse um fato qualquer. - Trabalho das sete às oito da noite, volto pra casa, dou banho neles, dou comida, troco fralda, cuido das crises. No outro dia, acordo às cinco e recomeço.

Kemal a observava em silêncio, mas os olhos dele estavam cheios.

- Nunca pensei em desistir - continuou ela. - Mas já pensei em desaparecer. Só pra respirar.

Ela virou-se, e os olhos de ambos se encontraram. Naquele instante, sem aviso, sem permissão, algo se quebrou entre eles. Um muro. Uma certeza. Uma proteção.

Kemal se aproximou devagar. Ficou ao lado dela.

- Você é mais forte do que qualquer pessoa que eu conheci na vida inteira.

Ela riu, amarga.

- Ser forte não é escolha. É condição.

- Mesmo assim, você é... - ele parou, como se as palavras pesassem demais. - Você é tudo o que me falta.

Elif desviou o olhar.

- Não diga isso.

- Por quê?

- Porque é cedo demais. Porque a gente vive em mundos diferentes. Porque eu não tenho espaço pra promessas bonitas.

- E se eu não prometer nada? - ele sussurrou. - Só estiver aqui. Só te ouvir. Só... existir do teu lado?

Ela fechou os olhos por um segundo. O mar continuava ali, constante. Mas dentro dela, um furacão se formava.

- Você pode tentar - disse, finalmente. - Mas eu não sei se vou deixar.

Ele assentiu.

- Eu espero.

Voltaram para o carro já sob o céu escuro. A lua cheia iluminava o Bósforo e criava reflexos prateados nas águas agitadas. Elif encostou a cabeça no vidro e fechou os olhos por alguns minutos. Kemal dirigia devagar, como se não quisesse que a noite acabasse.

Quando chegaram à porta do prédio dela, ela desceu em silêncio. Antes de entrar, virou-se.

- Não venha aqui. Nem buzine. Nem me mande flores.

- Eu nunca mando flores - respondeu ele, com um sorriso cansado. - Mas posso aparecer amanhã no café, pedir o mesmo café ruim, e dizer que seu lenço não combinava com seu casaco.

Elif mordeu o lábio, controlando a risada.

- Idiota.

- Um idiota encantado - disse ele, antes de ir embora.

Ela entrou em casa, fechou a porta com cuidado, e por um segundo apoiou-se contra ela, respirando fundo.

Lá dentro, a mãe resmungava palavras soltas, como sempre. O pai dormia em sua cadeira.

Mas, pela primeira vez em muito tempo, Elif subiu para o quarto com o peito cheio de alguma coisa parecida com esperança.

E Kemal, ao chegar ao apartamento de cobertura com vista para o mar, percebeu que o silêncio ali agora doía mais do que nunca.

            
            

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