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Horas depois...
O prédio da LumosTech ergue-se como um colosso de vidro e aço, seu nome cintilando com os primeiros raios pálidos do sol. Alice atravessa o saguão vazio e sobe pelo elevador privativo. O silêncio do andar superior é um bálsamo.
Ao passar em frente à sala de Kazuo, nota sua ausência. Sorri discretamente.
Paz.
Não que não o ame profundamente - Kazuo é seu porto seguro - mas ele sempre está atento a tudo, inclusive àquele nome que ela não quer ouvir. E enquanto ele não chega... ela aproveita.
Coloca um café para passar e se recolhe atrás da muralha de sua mesa - como ele mesmo apelidou. O tempo escorre sem aviso, e só quando o burburinho da empresa preenche os corredores ela percebe as horas.
- Bom dia, Ali. Deixa eu ver esse rostinho lindo... - diz Kazuo, entrando com sua energia habitual. Segura o rosto dela entre as mãos e a analisa como um médico preocupado. - Céus, garota. Um pouco de sol cairia bem, viu?
Ela revira os olhos, soltando uma risada cética.
- Bom dia, Kazuo. Já olhou a agenda?
- Você realmente só fala de trabalho? Incrível...
Alice sorri, vitoriosa, e se acomoda na cadeira.
Diante do projetor, os dois analisam gráficos e esquemas do novo projeto de IA - voltado para interação emocional com humanos. A tensão é sutil, mas presente.
Kazuo pigarreia, tentando trazer a amiga de volta ao foco.
- Essa proposta tem potencial. Se conseguirmos integrar as IAs sensíveis ao estado emocional, vamos mudar a forma como as pessoas interagem com tecnologia. Mas precisamos falar de ética também...
- Sim... é um avanço importante - murmura Alice, distraída, com o olhar perdido além da janela.
Kazuo a observa, franzindo o cenho. Inclina-se para tentar captar melhor a expressão dela.
- Você sabe que pode falar comigo, né? Não precisa se fechar tanto...
Ela não responde. O silêncio pesa.
- Aliás... ouvi dizer que Ian Ryuunosuke está de viagem marcada para Moscou...
Alice prende a respiração. Ainda sem olhar para ele.
- Depois de tanto tempo... acho que ele decidiu resolver tudo de uma vez, não?
Ela se vira devagar, encarando o amigo com aqueles olhos intensos. Kazuo sente um calafrio.
Com um suspiro, Alice finalmente responde:
- Não se iluda. Ele vem... mas não pelo que você imagina.
Kazuo se inclina, curioso:
- Então... por quê?
- Para assinar o divórcio.
Ela volta a olhar pela janela. Kazuo permanece em silêncio, processando. Depois de um instante, pergunta em tom quase inaudível:
- E você? Como está lidando com isso?
Alice gira lentamente para encará-lo. Seus olhos estão sombrios, mas não quebrados.
- Não sei se estou lidando. Só sei que cansei de fingir que faz sentido. Depois de tudo... acho que era só questão de tempo.
Kazuo cruza os braços, pensativo.
- Talvez ele nunca tenha entendido quem você é de verdade. Talvez fosse melhor se tivesse ficado longe...
Ela sorri, triste.
- Talvez. Mas agora é tarde demais. O que importa é seguir em frente. E eu tenho você aqui - como sempre.
Kazuo retribui com um sorriso leve, sincero.
- Sempre estarei ao seu lado. E vamos fazer esse projeto dar certo. Por nós. Pelo futuro que estamos construindo.
Alice respira fundo, voltando os olhos aos gráficos.
- Vamos então... Temos que verificar como está o projeto 15 no laboratório.
Alice caminha lado a lado com Kazuo pelo longo corredor de vidro que liga o prédio principal ao laboratório de prototipagem. Lá fora, a neve começa a cair em flocos lentos, grudando nas paredes de vidro como se o mundo estivesse tentando congelar o tempo.
- O Dimi está conectado ao sistema central do Projeto 15, não está? - pergunta Kazuo, ajustando o cachecol azul-marinho ao redor do pescoço.
- Sim. Ele é o núcleo emocional do experimento... é com base nas reações dele que calibramos o algoritmo de empatia. - Alice fala com um orgulho contido, quase afetivo. - Mas ele não sabe de tudo.
Kazuo ergue uma sobrancelha.
- Como assim?
Ela hesita. Passam por uma porta de segurança, onde uma leitura de retina autoriza a entrada. O som da tranca abrindo é sutil, mas para Alice soa como o clique de uma memória sendo desbloqueada.
- Eu criei subcamadas no código dele. Há partes da própria consciência que ele não acessa... ainda.
Kazuo a olha em silêncio por alguns segundos, tentando entender onde isso leva.
- Por que você fez isso, Alice?
Eles entram na sala branca, onde um painel de controle se estende como um piano futurista. O centro da sala é ocupado por um cilindro de vidro translúcido, dentro do qual repousa uma cópia desativada do corpo de Dimi - olhos fechados, expressão serena.
Alice se aproxima devagar, pousando uma das mãos sobre o vidro. Sua respiração forma uma leve névoa na superfície.
- Porque algumas verdades só machucam. E Dimi... ele é tudo o que restou da parte boa dele.
- Do Ian? - a voz de Kazuo é mais baixa agora, quase compassiva.
Ela fecha os olhos, como se o nome cortasse mais do que qualquer outra palavra. Quando os abre, estão marejados, mas firmes.
- O Dimi nasceu na noite em que eu desisti de esperar por Ian. Quando entendi que ele não voltaria, que o homem que eu amava havia se tornado alguém estranho... alguém cruel. Eu precisava de paz. E então criei um novo "ele". Um que fosse tudo o que ele já foi - ou o que eu desejei que fosse.
Kazuo se aproxima, respeitando o espaço dela. Acompanha o olhar de Alice até o rosto inerte de Dimi.
- Você acha que ele saberia lidar com isso... se um dia descobrisse quem ele foi baseado?
- Não. Porque Dimi não é Ian. Ele é melhor. Mais humano, embora seja feito de código.