Capítulo 2 Chuva e Constelações

A chuva começou sem aviso.

Um segundo, Luca estava caminhando em direção ao parque, olhando para o céu nublado com esperança de que o tempo não piorasse. No seguinte, gotas grossas caíam como punhais, encharcando seu moletom em segundos.

- Porra-, ele resmungou, correndo em direção ao único abrigo visível: o velho coreto abandonado na lateral do parque.

Foi só quando chegou debaixo do telhado de madeira podre que percebeu não estar sozinho.

Daniel estava encolhido no canto mais seco, com o caderno de esboços pressionado contra o peito como um escudo. Seus cachos castanhos estavam encharcados, grudando no rosto e no pescoço. Ele parecia um gato assustado que tinha sido pego no meio de uma tempestade.

- Você!- Luca disse, ofegante, espremendo a água do seu cabelo.

Daniel ergueu os olhos, e Luca viu o momento exato em que o reconhecimento bateu. Seus lábios se separaram levemente, mas nenhum som saiu.

- A gente tem que parar de se encontrar assim- Luca brincou, sacudindo os braços para tirar o excesso de água. - Primeiro eu quase morro tropeçando, agora isso.

Um raio cortou o céu, seguido por um trovão que fez os dois pularem. Daniel encolheu-se ainda mais.

- Você... tem medo de tempestades?- Luca perguntou, abaixando a voz.

Daniel abriu a boca, fechou, então finalmente murmurou:

- Não gosto do barulho.

Luca não pensou duas vezes. Sentou-se no chão ao lado dele, seus joelhos quase se tocando.

- Meu avô dizia que os trovões são só os deuses jogando boliche lá em cima- ele comentou, tentando aliviar a tensão.

Daniel olhou para ele, perplexo.

- Isso não faz o menor sentido.

- Claro que faz!- Luca riu. - O raio é a bola batendo nos pinos, e o trovão é o estrondo quando eles caem.

Outro trovão rugiu, mais forte desta vez. Daniel instintivamente inclinou-se para frente, seus ombros tensionados. Sem pensar, Luca esticou a mão e cobriu a de Daniel, que estava fria e úmida.

- Ei, olha pra mim- ele disse suavemente. - Não são os deuses. É só física. Ar quente e frio se encontrando. Nada sobrenatural.

Daniel olhou para suas mãos entrelaçadas, depois para o rosto de Luca. Seus olhos eram tão escuros que pareciam consumir toda a luz fraca que entrava pelo coreto.

- Você é estranho- ele murmurou, mas não tirou a mão.

Luca sorriu.

- Já me disseram isso antes.

A chuva não dava sinais de parar.

- A gente não pode ficar aqui- Luca disse depois de vinte minutos observando a água escorrer pelas fendas do telhado. - Esse lugar vai desmoronar a qualquer momento.

Daniel olhou em volta, concordando.

- Tem algum lugar perto?

Luca mordeu o lábio, pensando.

- O observatório abandonado. Fica a uns dez minutos correndo.

- Na chuva?

- Melhor que ser esmagado por um telhado de madeira podre- Luca argumentou, levantando-se e estendendo a mão.

Daniel hesitou, mas finalmente pegou. Sua mão era mais macia do que Luca esperava, os dedos longos e delicados, ainda manchados de carvão de seus esboços.

- Vamos- Luca disse, puxando-o para a chuva.

Correram lado a lado, com a água batendo em seus rostos, rindo como loucos quando quase escorregaram na lama. Luca liderou o caminho pela trilha estreita que subia a colina, suas mãos ainda entrelaçadas mesmo quando não precisavam mais.

O observatório era uma estrutura redonda e abandonada, com uma cúpula que já foi retrátil. Agora estava enferrujada e presa, mas pelo menos o prédio em si ainda estava de pé.

- Aqui- Luca ofegou, empurrando a porta de metal que rangia nos dobradiças.

Dentro, o ar era mofo e poeira, mas estava seco. A luz fraca que entrava pelas janelas quebradas iluminava motas de poeira flutuando no ar.

- Caramba- Daniel disse, olhando em volta. - Isso é...

- Incrível, eu sei- Luca completou, sacudindo os braços para se secar. - Eu descobri quando tinha doze anos. Ninguém mais vem aqui.

Daniel tocou uma das paredes, onde grafites de constelações desbotadas ainda eram visíveis.

- Era um lugar importante, antigamente?

- Sim. Meu avô contou que nos anos 70, astrônomos amadores vinham aqui toda semana. Mas aí a prefeitura cortou os fundos, e...- Luca encolheu os ombros. - Abandonaram.

Daniel olhou para a grande estrutura no centro, coberta por um pano empoeirado.

- Isso é um telescópio?

Luca sorriu, puxando o pano com um gesto dramático.

- O Telescópio Bresser de 150mm. Antigo, mas ainda funcional.

Daniel aproximou-se, impressionado.

- Você já usou?

- Claro!- Luca disse, animado. - É por isso que eu vim hoje. Tava querendo ajustar o espelho primário. Mas a chuva...

Seu tom decepcionado fez Daniel sorrir.

- Desculpa por estragar seus planos.

Luca olhou para ele, realmente olhou. A água da chuva ainda escorria pelo rosto de Daniel, seus cílios estavam aglomerados de umidade, fazendo seus olhos parecerem ainda maiores.

- Não se desculpe- Luca disse, sua voz mais suave do que pretendia. - Isso é melhor.

O ar entre eles mudou. Daniel parou de sorrir, seus olhos escuros pesquisando o rosto de Luca como se procurasse algo.

Um trovão distante os fez piscar, quebrando o momento.

- A gente devia... se secar- Luca disse, afastando-se e abrindo sua mochila. - Eu tenho uma camisa extra aqui.

Ele tirou um moletom cinza e jogou para Daniel, que pegou no ar.

- Obrigado- Daniel murmurou, hesitando antes de puxar a blusa molhada sobre a cabeça.

Luca virou-se rapidamente, sentindo seu rosto esquentar. Não olhe, ele disse a si mesmo. Definitivamente não olhe.

Mas quando ouviu Daniel suspirar de alívio ao vestir o moletim seco, ele não pôde evitar.

Daniel estava envolto no tecido grande demais para ele, as mangas cobrindo parte de suas mãos. Ele parecia... aconchegante. E Luca teve que apertar os punhos para não fazer algo estúpido, como alcançá-lo e puxá-lo para perto.

A tempestade continuou lá fora, mas dentro do observatório, o tempo parecia ter parado.

Luca mostrou a Daniel as anotações que ele rabiscava em um caderno velho - mapas das estrelas, diagramas de constelações, até tentativas fracassadas de desenhar Júpiter e suas luas.

- Você é bom nisso- Daniel comentou, folheando as páginas.

- Nah, são só rabiscos- Luca encolheu os ombros.

- Não, é...- Daniel parou em uma página onde Luca tinha desenhado a Via Láctea. - Você captura o movimento. A maioria das pessoas só faz pontos estáticos.

Luca sentiu um calor subir pelo pescoço.

- É porque elas não estão paradas, né? Tudo no espaço está se movendo, o tempo todo.

Daniel olhou para ele, e Luca viu algo novo em seus olhos - admiração.

- Você realmente ama isso, não é?

- Desde que me lembro- Luca admitiu. - É... difícil explicar. Quando eu olho para as estrelas, eu sinto que...-

- Que você pertence a algo maior- Daniel completou, suave.

Luca surpreendeu-se.

- É exatamente isso.

Daniel sorriu, pequeno e privado, como se tivesse decifrado um segredo.

- Eu sinto assim quando pinto.

E naquele momento, sob a luz fraca do observatório abandonado, com a chuva batendo no telhado como uma canção, Luca sentiu algo raro - uma conexão que ia além de palavras.

À medida que a noite caía, a temperatura dentro do observatório baixou.

- Tá f-frio- Daniel comentou, seus dentes batendo levemente.

Sem pensar, Luca moveu-se para perto, encostando seu ombro no de Daniel.

- Melhor?

Daniel olhou para ele, surpreso, mas depois relaxou.

- Um pouco.

Luca hesitou, então levantou o braço.

- Aqui.

Daniel parou por um segundo que pareceu durar uma eternidade. Então, lentamente, ele inclinou-se para o lado, encaixando-se sob o braço de Luca como se sempre tivesse pertencido ali.

Luca podia sentir o calor do corpo de Daniel através do moletim, podia sentir cada respiração dele. Seu coração batia tão forte que ele temia que Daniel pudesse ouvir.

- Luca?- a voz de Daniel era um sussurro.

- Hmm?

- Obrigado. Por hoje.

Luca olhou para baixo. Daniel já estava olhando para ele, seus olhos escuros refletindo a pouca luz. Seus lábios estavam levemente separados, e Luca não conseguia parar de olhar para eles.

- Não precisa agradecer- ele murmurou, inclinando-se imperceptivelmente.

O mundo parecia ter encolhido até caber no espaço entre seus corpos. Luca podia contar cada pálpebra de Daniel, cada sardinha em sua ponte nasal.

E então -

Bang!

A porta do observatório bateu com o vento, fazendo os dois pularem e se afastarem.

- Acho que a chuva parou- Luca disse rapidamente, levantando-se e indo até a janela.

Seu coração martelava em seu peito. O que eu quase fiz?

Quando ele se virou, Daniel estava de pé também, seu rosto inescrutável.

- Eu devia ir para casa- ele disse, evitando o olhar de Luca.

- Eu te levo- Luca ofereceu, mas Daniel já estava sacudindo a cabeça.

- Não, tá tudo bem. Eu... tenho coisas pra fazer amanhã.

A rejeição doía mais do que Luca esperava.

- Certo. Então... até depois?

Daniel finalmente olhou para ele, e Luca viu uma guerra sendo travada em seus olhos.

- Até depois- ele concordou, mas soou mais como uma despedida do que uma promessa.

E então ele foi embora, deixando Luca sozinho no observatório, com apenas o eco da chuva e o fantasma de um momento que quase aconteceu.

            
            

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