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A chuva começou sem aviso.
Um segundo, Luca estava caminhando em direção ao parque, olhando para o céu nublado com esperança de que o tempo não piorasse. No seguinte, gotas grossas caíam como punhais, encharcando seu moletom em segundos.
- Porra-, ele resmungou, correndo em direção ao único abrigo visível: o velho coreto abandonado na lateral do parque.
Foi só quando chegou debaixo do telhado de madeira podre que percebeu não estar sozinho.
Daniel estava encolhido no canto mais seco, com o caderno de esboços pressionado contra o peito como um escudo. Seus cachos castanhos estavam encharcados, grudando no rosto e no pescoço. Ele parecia um gato assustado que tinha sido pego no meio de uma tempestade.
- Você!- Luca disse, ofegante, espremendo a água do seu cabelo.
Daniel ergueu os olhos, e Luca viu o momento exato em que o reconhecimento bateu. Seus lábios se separaram levemente, mas nenhum som saiu.
- A gente tem que parar de se encontrar assim- Luca brincou, sacudindo os braços para tirar o excesso de água. - Primeiro eu quase morro tropeçando, agora isso.
Um raio cortou o céu, seguido por um trovão que fez os dois pularem. Daniel encolheu-se ainda mais.
- Você... tem medo de tempestades?- Luca perguntou, abaixando a voz.
Daniel abriu a boca, fechou, então finalmente murmurou:
- Não gosto do barulho.
Luca não pensou duas vezes. Sentou-se no chão ao lado dele, seus joelhos quase se tocando.
- Meu avô dizia que os trovões são só os deuses jogando boliche lá em cima- ele comentou, tentando aliviar a tensão.
Daniel olhou para ele, perplexo.
- Isso não faz o menor sentido.
- Claro que faz!- Luca riu. - O raio é a bola batendo nos pinos, e o trovão é o estrondo quando eles caem.
Outro trovão rugiu, mais forte desta vez. Daniel instintivamente inclinou-se para frente, seus ombros tensionados. Sem pensar, Luca esticou a mão e cobriu a de Daniel, que estava fria e úmida.
- Ei, olha pra mim- ele disse suavemente. - Não são os deuses. É só física. Ar quente e frio se encontrando. Nada sobrenatural.
Daniel olhou para suas mãos entrelaçadas, depois para o rosto de Luca. Seus olhos eram tão escuros que pareciam consumir toda a luz fraca que entrava pelo coreto.
- Você é estranho- ele murmurou, mas não tirou a mão.
Luca sorriu.
- Já me disseram isso antes.
A chuva não dava sinais de parar.
- A gente não pode ficar aqui- Luca disse depois de vinte minutos observando a água escorrer pelas fendas do telhado. - Esse lugar vai desmoronar a qualquer momento.
Daniel olhou em volta, concordando.
- Tem algum lugar perto?
Luca mordeu o lábio, pensando.
- O observatório abandonado. Fica a uns dez minutos correndo.
- Na chuva?
- Melhor que ser esmagado por um telhado de madeira podre- Luca argumentou, levantando-se e estendendo a mão.
Daniel hesitou, mas finalmente pegou. Sua mão era mais macia do que Luca esperava, os dedos longos e delicados, ainda manchados de carvão de seus esboços.
- Vamos- Luca disse, puxando-o para a chuva.
Correram lado a lado, com a água batendo em seus rostos, rindo como loucos quando quase escorregaram na lama. Luca liderou o caminho pela trilha estreita que subia a colina, suas mãos ainda entrelaçadas mesmo quando não precisavam mais.
O observatório era uma estrutura redonda e abandonada, com uma cúpula que já foi retrátil. Agora estava enferrujada e presa, mas pelo menos o prédio em si ainda estava de pé.
- Aqui- Luca ofegou, empurrando a porta de metal que rangia nos dobradiças.
Dentro, o ar era mofo e poeira, mas estava seco. A luz fraca que entrava pelas janelas quebradas iluminava motas de poeira flutuando no ar.
- Caramba- Daniel disse, olhando em volta. - Isso é...
- Incrível, eu sei- Luca completou, sacudindo os braços para se secar. - Eu descobri quando tinha doze anos. Ninguém mais vem aqui.
Daniel tocou uma das paredes, onde grafites de constelações desbotadas ainda eram visíveis.
- Era um lugar importante, antigamente?
- Sim. Meu avô contou que nos anos 70, astrônomos amadores vinham aqui toda semana. Mas aí a prefeitura cortou os fundos, e...- Luca encolheu os ombros. - Abandonaram.
Daniel olhou para a grande estrutura no centro, coberta por um pano empoeirado.
- Isso é um telescópio?
Luca sorriu, puxando o pano com um gesto dramático.
- O Telescópio Bresser de 150mm. Antigo, mas ainda funcional.
Daniel aproximou-se, impressionado.
- Você já usou?
- Claro!- Luca disse, animado. - É por isso que eu vim hoje. Tava querendo ajustar o espelho primário. Mas a chuva...
Seu tom decepcionado fez Daniel sorrir.
- Desculpa por estragar seus planos.
Luca olhou para ele, realmente olhou. A água da chuva ainda escorria pelo rosto de Daniel, seus cílios estavam aglomerados de umidade, fazendo seus olhos parecerem ainda maiores.
- Não se desculpe- Luca disse, sua voz mais suave do que pretendia. - Isso é melhor.
O ar entre eles mudou. Daniel parou de sorrir, seus olhos escuros pesquisando o rosto de Luca como se procurasse algo.
Um trovão distante os fez piscar, quebrando o momento.
- A gente devia... se secar- Luca disse, afastando-se e abrindo sua mochila. - Eu tenho uma camisa extra aqui.
Ele tirou um moletom cinza e jogou para Daniel, que pegou no ar.
- Obrigado- Daniel murmurou, hesitando antes de puxar a blusa molhada sobre a cabeça.
Luca virou-se rapidamente, sentindo seu rosto esquentar. Não olhe, ele disse a si mesmo. Definitivamente não olhe.
Mas quando ouviu Daniel suspirar de alívio ao vestir o moletim seco, ele não pôde evitar.
Daniel estava envolto no tecido grande demais para ele, as mangas cobrindo parte de suas mãos. Ele parecia... aconchegante. E Luca teve que apertar os punhos para não fazer algo estúpido, como alcançá-lo e puxá-lo para perto.
A tempestade continuou lá fora, mas dentro do observatório, o tempo parecia ter parado.
Luca mostrou a Daniel as anotações que ele rabiscava em um caderno velho - mapas das estrelas, diagramas de constelações, até tentativas fracassadas de desenhar Júpiter e suas luas.
- Você é bom nisso- Daniel comentou, folheando as páginas.
- Nah, são só rabiscos- Luca encolheu os ombros.
- Não, é...- Daniel parou em uma página onde Luca tinha desenhado a Via Láctea. - Você captura o movimento. A maioria das pessoas só faz pontos estáticos.
Luca sentiu um calor subir pelo pescoço.
- É porque elas não estão paradas, né? Tudo no espaço está se movendo, o tempo todo.
Daniel olhou para ele, e Luca viu algo novo em seus olhos - admiração.
- Você realmente ama isso, não é?
- Desde que me lembro- Luca admitiu. - É... difícil explicar. Quando eu olho para as estrelas, eu sinto que...-
- Que você pertence a algo maior- Daniel completou, suave.
Luca surpreendeu-se.
- É exatamente isso.
Daniel sorriu, pequeno e privado, como se tivesse decifrado um segredo.
- Eu sinto assim quando pinto.
E naquele momento, sob a luz fraca do observatório abandonado, com a chuva batendo no telhado como uma canção, Luca sentiu algo raro - uma conexão que ia além de palavras.
À medida que a noite caía, a temperatura dentro do observatório baixou.
- Tá f-frio- Daniel comentou, seus dentes batendo levemente.
Sem pensar, Luca moveu-se para perto, encostando seu ombro no de Daniel.
- Melhor?
Daniel olhou para ele, surpreso, mas depois relaxou.
- Um pouco.
Luca hesitou, então levantou o braço.
- Aqui.
Daniel parou por um segundo que pareceu durar uma eternidade. Então, lentamente, ele inclinou-se para o lado, encaixando-se sob o braço de Luca como se sempre tivesse pertencido ali.
Luca podia sentir o calor do corpo de Daniel através do moletim, podia sentir cada respiração dele. Seu coração batia tão forte que ele temia que Daniel pudesse ouvir.
- Luca?- a voz de Daniel era um sussurro.
- Hmm?
- Obrigado. Por hoje.
Luca olhou para baixo. Daniel já estava olhando para ele, seus olhos escuros refletindo a pouca luz. Seus lábios estavam levemente separados, e Luca não conseguia parar de olhar para eles.
- Não precisa agradecer- ele murmurou, inclinando-se imperceptivelmente.
O mundo parecia ter encolhido até caber no espaço entre seus corpos. Luca podia contar cada pálpebra de Daniel, cada sardinha em sua ponte nasal.
E então -
Bang!
A porta do observatório bateu com o vento, fazendo os dois pularem e se afastarem.
- Acho que a chuva parou- Luca disse rapidamente, levantando-se e indo até a janela.
Seu coração martelava em seu peito. O que eu quase fiz?
Quando ele se virou, Daniel estava de pé também, seu rosto inescrutável.
- Eu devia ir para casa- ele disse, evitando o olhar de Luca.
- Eu te levo- Luca ofereceu, mas Daniel já estava sacudindo a cabeça.
- Não, tá tudo bem. Eu... tenho coisas pra fazer amanhã.
A rejeição doía mais do que Luca esperava.
- Certo. Então... até depois?
Daniel finalmente olhou para ele, e Luca viu uma guerra sendo travada em seus olhos.
- Até depois- ele concordou, mas soou mais como uma despedida do que uma promessa.
E então ele foi embora, deixando Luca sozinho no observatório, com apenas o eco da chuva e o fantasma de um momento que quase aconteceu.