Capítulo 5 Cartas Não Enviadas

O relógio da igreja batia meia-noite quando Luca parou em frente à casa dos Moreira pela primeira vez.

Ele contornou o quintal, evitando os galhos secos que poderiam estalar e delatá-lo. A janela do segundo andar - a única com um adesivo de constelações no vidro - estava escura, mas não trancada.

Luca jogou uma pedrinha. Nada. Outra.

A cortina moveu-se. Daniel apareceu, esfregando os olhos, até reconhecer a silhueta abaixo. Seus olhos arregalaram-se.

- Você está maluco? - ele sussurrou ao abrir a janela.

Luca cruzou os braços.

- Desce aqui. Agora.

Daniel hesitou, olhando para trás, para o corredor escuro da casa.

- Meu pai-

- Agora, Daniel.

Dois minutos depois, Daniel saía pela porta dos fundos, envolto em um casaco muito grande para ele.

- O que você-

Luca não deixou terminar. Puxou-o pela rua escura, só soltando seu pulso quando alcançaram a ponte abandonada às margens do rio.

- Você acha mesmo que eu ia deixar você ir embora sem falar comigo? - a voz de Luca ecoou no vazio.

Daniel encolheu-se no casaco.

- Já falamos.

- Você falou. Eu ouvi. Agora é minha vez. - Luca tirou algo do bolso - uma carta amassada. - Li isso umas cinquenta vezes hoje.

Daniel reconheceu seu próprio papel de carta, o envelope que deixara na cabana junto com a passagem. Estava aberto.

- Você não devia ter lido.

- "Querido Luca" - Luca leu em voz alta, ignorando-o, a voz trêmula sob a luz fraca da lua - "Quando você ler isso, já estarei no ônibus. Escrevo porque não consegui dizer sua cara. A verdade é que tenho medo. Medo do meu pai, do Rio, de fracassar. Mas mais que tudo, tenho medo de olhar pra você e desistir de tudo. Porque se tiver que escolher entre minhas cores e suas estrelas, eu não sei o que farei. Por favor, não me espere. - D."

O silêncio que se seguiu foi cortado apenas pelo rio correndo abaixo deles.

- Você mentiu - Luca acusou, a carta tremendo em suas mãos. - Na cabana, você disse que era melhor assim. Mas aqui- - ele cutucou o papel - aqui você admite que está fugindo.

Daniel apertou os braços ao redor do próprio corpo, como se tentando se manter inteiro.

- E daí? Não muda nada. Eu ainda tenho que ir.

- Não tem que fazer porra nenhuma! - Luca avançou, pegando o rosto de Daniel entre as mãos. - Você pode ficar. Comigo. Nós podemos-

- O quê, Luca? - Daniel finalmente explodiu, afastando-se. - Morar na sua cabana de mentira? Viver escondido pelo resto da vida? Você não entende... Eu preciso ir.

Seus olhos estavam selvagens, cheios de lágrimas não derramadas. Luca nunca o vira assim - frágil e furioso ao mesmo tempo.

- Então vá - Luca disse, mais calmamente. - Mas não porque está com medo do seu pai ou de mim. Vá porque você quer.

Daniel engoliu seco.

- E você?

- Eu te espero.

- Não prometa isso.

- Já prometi - Luca tocou a constelação de Ursa Menor desenhada no caderno de Daniel, que ele trouxera no bolso. - Desde o primeiro dia no parque.

Daniel soltou um som entre um riso e um soluço.

- Você é insuportável.

- E você está chorando.

- Não estou - Daniel limpou o rosto com a manga, mas as lágrimas continuaram. Luca puxou-o para um abraço, sentando-os ambos na ponte velha.

- Eu te escrevo todo dia - Daniel murmurou contra seu ombro.

- Eu guardo todas as cartas.

- Vou ter saudade.

Luca apertou-o mais forte.

- Eu também.

E sob as estrelas que Luca tanto amava, eles ficaram entrelaçados até o amanhecer, como se pudessem parar o tempo se ficassem juntos por tempo suficiente.

A estação de ônibus estava vazia na manhã de domingo.

Daniel chegou cedo, com apenas uma mochila e um tubo de pinturas. Seu pai o deixara na porta sem um adeus - apenas um olhar gelado e um aviso para "não esquecer de quem era".

- Ele não veio? - Marina apareceu ao seu lado, oferecendo um café em um copo de papel.

Daniel aceitou, aquecendo as mãos.

- Achei melhor não.

Marina estudou-o por um longo momento.

- Ele está naquele morro atrás da igreja. Com o telescópio.

Daniel segurou o café com mais força.

- Ele disse que-

- Ah, para com isso - Marina deu um tapa afetuoso em sua nuca. - Vocês dois são insuportáveis. O ônibus demora vinte minutos ainda. Corre lá.

Daniel hesitou, olhando para sua passagem.

- E se eu perder-

- Corre, amor.

Ele correu.

Luca estava sentado no morro, como Marina dissera, ajustando freneticamente as lentes do telescópio quando ouviu passos atrás de si.

- Eu sabia que você viria - ele disse sem virar-se.

Daniel ofegava da corrida.

- Como?

- Porque eu te conheço - Luca finalmente olhou para trás, e Daniel viu que seus olhos estavam vermelhos. - Melhor do que você pensa.

O ônibus buzinou ao longe. Daniel sentiu cada batida do seu coração como um relógio contando regressivamente.

- Luca, eu-

- Não - Luca levantou-se, limpando as mãos nas calças. - Nada de despedidas dramáticas. Apenas... - ele ajustou o telescópio mais uma vez - olhe.

Daniel inclinou-se, fechando um olho. E então viu.

Na lente, nítida como se pudesse tocá-la, estava a Lua - mas alguém tinha desenhado minúsculos girassóis em sua superfície, transformando as crateras em pétalas.

- Como você...?

- Tinta permanente e muita paciência - Luca sorriu, trêmulo. - Agora toda vez que você olhar pra Lua, vai lembrar da gente. Das flores e das estrelas.

O ônibus buzinou novamente, mais perto. Daniel olhou para Luca, realmente olhou - o menino que tropeçara em seu caminho e mudara tudo.

- Dois anos - ele disse abruptamente.

- O quê?

- Me dá dois anos no Rio. Para estudar, me estabelecer... - Daniel engoliou. - Aí eu volto. Por você.

Luca sacudiu a cabeça.

- Volte por você. Quando estiver pronto.

O motor do ônibus roncava na estrada abaixo. Daniel fez algo que nunca fizera antes - pegou o rosto de Luca e beijou-o em plena luz do dia, sem medo de quem visse.

- Te amo - ele sussurrou contra seus lábios, as palavras saindo antes que pudesse pará-las.

Luca sorriu, misturando lágrimas e risos.

- Leva essa carta com você - ele enfiou um envelope no bolso de Daniel. - Só abre quando estiver com saudade.

O último aviso do ônibus ecoou pelo morro. Daniel correu, virando-se a cada poucos passos para ver Luca ainda ali, acenando, até que a curva na estrada os separou.

Só então, sentado no banco traseiro do ônibus, Daniel abriu a carta.

Dentro, apenas uma frase:

"Eu também."

                         

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