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O relógio da igreja batia meia-noite quando Luca parou em frente à casa dos Moreira pela primeira vez.
Ele contornou o quintal, evitando os galhos secos que poderiam estalar e delatá-lo. A janela do segundo andar - a única com um adesivo de constelações no vidro - estava escura, mas não trancada.
Luca jogou uma pedrinha. Nada. Outra.
A cortina moveu-se. Daniel apareceu, esfregando os olhos, até reconhecer a silhueta abaixo. Seus olhos arregalaram-se.
- Você está maluco? - ele sussurrou ao abrir a janela.
Luca cruzou os braços.
- Desce aqui. Agora.
Daniel hesitou, olhando para trás, para o corredor escuro da casa.
- Meu pai-
- Agora, Daniel.
Dois minutos depois, Daniel saía pela porta dos fundos, envolto em um casaco muito grande para ele.
- O que você-
Luca não deixou terminar. Puxou-o pela rua escura, só soltando seu pulso quando alcançaram a ponte abandonada às margens do rio.
- Você acha mesmo que eu ia deixar você ir embora sem falar comigo? - a voz de Luca ecoou no vazio.
Daniel encolheu-se no casaco.
- Já falamos.
- Você falou. Eu ouvi. Agora é minha vez. - Luca tirou algo do bolso - uma carta amassada. - Li isso umas cinquenta vezes hoje.
Daniel reconheceu seu próprio papel de carta, o envelope que deixara na cabana junto com a passagem. Estava aberto.
- Você não devia ter lido.
- "Querido Luca" - Luca leu em voz alta, ignorando-o, a voz trêmula sob a luz fraca da lua - "Quando você ler isso, já estarei no ônibus. Escrevo porque não consegui dizer sua cara. A verdade é que tenho medo. Medo do meu pai, do Rio, de fracassar. Mas mais que tudo, tenho medo de olhar pra você e desistir de tudo. Porque se tiver que escolher entre minhas cores e suas estrelas, eu não sei o que farei. Por favor, não me espere. - D."
O silêncio que se seguiu foi cortado apenas pelo rio correndo abaixo deles.
- Você mentiu - Luca acusou, a carta tremendo em suas mãos. - Na cabana, você disse que era melhor assim. Mas aqui- - ele cutucou o papel - aqui você admite que está fugindo.
Daniel apertou os braços ao redor do próprio corpo, como se tentando se manter inteiro.
- E daí? Não muda nada. Eu ainda tenho que ir.
- Não tem que fazer porra nenhuma! - Luca avançou, pegando o rosto de Daniel entre as mãos. - Você pode ficar. Comigo. Nós podemos-
- O quê, Luca? - Daniel finalmente explodiu, afastando-se. - Morar na sua cabana de mentira? Viver escondido pelo resto da vida? Você não entende... Eu preciso ir.
Seus olhos estavam selvagens, cheios de lágrimas não derramadas. Luca nunca o vira assim - frágil e furioso ao mesmo tempo.
- Então vá - Luca disse, mais calmamente. - Mas não porque está com medo do seu pai ou de mim. Vá porque você quer.
Daniel engoliu seco.
- E você?
- Eu te espero.
- Não prometa isso.
- Já prometi - Luca tocou a constelação de Ursa Menor desenhada no caderno de Daniel, que ele trouxera no bolso. - Desde o primeiro dia no parque.
Daniel soltou um som entre um riso e um soluço.
- Você é insuportável.
- E você está chorando.
- Não estou - Daniel limpou o rosto com a manga, mas as lágrimas continuaram. Luca puxou-o para um abraço, sentando-os ambos na ponte velha.
- Eu te escrevo todo dia - Daniel murmurou contra seu ombro.
- Eu guardo todas as cartas.
- Vou ter saudade.
Luca apertou-o mais forte.
- Eu também.
E sob as estrelas que Luca tanto amava, eles ficaram entrelaçados até o amanhecer, como se pudessem parar o tempo se ficassem juntos por tempo suficiente.
A estação de ônibus estava vazia na manhã de domingo.
Daniel chegou cedo, com apenas uma mochila e um tubo de pinturas. Seu pai o deixara na porta sem um adeus - apenas um olhar gelado e um aviso para "não esquecer de quem era".
- Ele não veio? - Marina apareceu ao seu lado, oferecendo um café em um copo de papel.
Daniel aceitou, aquecendo as mãos.
- Achei melhor não.
Marina estudou-o por um longo momento.
- Ele está naquele morro atrás da igreja. Com o telescópio.
Daniel segurou o café com mais força.
- Ele disse que-
- Ah, para com isso - Marina deu um tapa afetuoso em sua nuca. - Vocês dois são insuportáveis. O ônibus demora vinte minutos ainda. Corre lá.
Daniel hesitou, olhando para sua passagem.
- E se eu perder-
- Corre, amor.
Ele correu.
Luca estava sentado no morro, como Marina dissera, ajustando freneticamente as lentes do telescópio quando ouviu passos atrás de si.
- Eu sabia que você viria - ele disse sem virar-se.
Daniel ofegava da corrida.
- Como?
- Porque eu te conheço - Luca finalmente olhou para trás, e Daniel viu que seus olhos estavam vermelhos. - Melhor do que você pensa.
O ônibus buzinou ao longe. Daniel sentiu cada batida do seu coração como um relógio contando regressivamente.
- Luca, eu-
- Não - Luca levantou-se, limpando as mãos nas calças. - Nada de despedidas dramáticas. Apenas... - ele ajustou o telescópio mais uma vez - olhe.
Daniel inclinou-se, fechando um olho. E então viu.
Na lente, nítida como se pudesse tocá-la, estava a Lua - mas alguém tinha desenhado minúsculos girassóis em sua superfície, transformando as crateras em pétalas.
- Como você...?
- Tinta permanente e muita paciência - Luca sorriu, trêmulo. - Agora toda vez que você olhar pra Lua, vai lembrar da gente. Das flores e das estrelas.
O ônibus buzinou novamente, mais perto. Daniel olhou para Luca, realmente olhou - o menino que tropeçara em seu caminho e mudara tudo.
- Dois anos - ele disse abruptamente.
- O quê?
- Me dá dois anos no Rio. Para estudar, me estabelecer... - Daniel engoliou. - Aí eu volto. Por você.
Luca sacudiu a cabeça.
- Volte por você. Quando estiver pronto.
O motor do ônibus roncava na estrada abaixo. Daniel fez algo que nunca fizera antes - pegou o rosto de Luca e beijou-o em plena luz do dia, sem medo de quem visse.
- Te amo - ele sussurrou contra seus lábios, as palavras saindo antes que pudesse pará-las.
Luca sorriu, misturando lágrimas e risos.
- Leva essa carta com você - ele enfiou um envelope no bolso de Daniel. - Só abre quando estiver com saudade.
O último aviso do ônibus ecoou pelo morro. Daniel correu, virando-se a cada poucos passos para ver Luca ainda ali, acenando, até que a curva na estrada os separou.
Só então, sentado no banco traseiro do ônibus, Daniel abriu a carta.
Dentro, apenas uma frase:
"Eu também."