Capítulo 4 Mapas Secretos

O primeiro toque sempre fica na pele por mais tempo que os outros.

Daniel acordou com os lábios formigando, como se o beijo de Luca tivesse deixado marcas invisíveis. Ele passou os dedos pela boca, revivendo a pressão suave, o modo como Luca tinha segurrado seu rosto como algo precioso.

Isso não muda nada, ele tinha dito.

Mentira.

O despertador marcava 6:17 AM. Dois meses e onze dias até sua partida para o Rio. Cinquenta e dois dias desde que ele permitira que Luca invadisse sua vida e bagunçasse todas as suas certezas.

Seu telefone vibrou sob o travesseiro.

Luca (6:18 AM):

Acordei pensando em vc. Tá doendo ainda?

Uma foto anexada: Luca na cama, o cabelo uma bagunça, segurando um saco de gelo contra o próprio olho em tom de brincadeira.

Daniel não conseguiu evitar o sorriso.

Daniel (6:20 AM):

Vc é um idiota. E não, tá melhor.

Três pontinhos apareceram e sumiram várias vezes antes da próxima mensagem.

Luca (6:23 AM):

Me encontra depois da aula? Tenho uma surpresa.

Daniel mordeu o lábio. Encontrar-se em público era arriscado. Alguém poderia ver e comentar com seu pai. Mas a lembrança dos dedos de Luca entrelaçados nos seus falou mais alto.

Daniel (6:25 AM):

Onde?

O "lugar secreto" de Luca era uma cabana abandonada nos fundos do antigo parque de diversões da cidade.

- Meu avô me trouxe aqui quando era pequeno - Luca explicou, empurrando a porta enferrujada. - Era o escritório do homem que operava o carrossel.

Dentro, o espaço minúsculo tinha sido transformado. Luzes de Natal penduradas no teto, um colchão inflável no chão coberto por cobertores, e nas paredes -

- São mapas estelares - Daniel percebeu, tocando os desenhos meticulosos.

- Dos dias importantes - Luca apontou para uma data escrita sob cada constelação. - 12 de março, quando a gente se conheceu. 3 de abril, a tempestade no observatório...

Daniel virou-se para ele, o coração batendo rápido demais.

- Você fez isso tudo?

Luca encostou a testa na dele.

- Tive ajuda das estrelas.

O beijo começou devagar, diferente do primeiro. Desta vez, Daniel permitiu-se explorar - o sabor de menta do chiclete de Luca, o som que ele fez quando Daniel mordeu seu lábio inferior, o modo como suas mãos encontraram o caminho sob a camiseta, descobrindo a pele quente.

- A gente devia parar - Daniel murmurou contra sua boca, sem nenhuma convicção.

- Por quê? - Luca puxou-o para o colchão, envolvendo-o em seus braços. - Não tem ninguém por quilômetros.

Era verdade. O silêncio era absoluto, quebrado apenas por seus suspiros. Daniel deixou Luca desabotoar seu jeans, deixou seus dedos explorarem lugares que ninguém mais tinha tocado.

- Você tem certeza? - Luca perguntou, seu hálito quente no pescoço de Daniel.

Em resposta, Daniel puxou-o mais perto, enterrando o rosto em seu ombro quando finalmente se tornaram um só.

Fora, o vento balançava as árvores velhas do parque abandonado. Dentro, eles criavam seu próprio universo.

- Você já pensou em como vai ser? No Rio? - Luca perguntou mais tarde, traçando círculos na barriga de Daniel.

O crepúsculo pintava o quarto de tons alaranjados. Daniel observou as sombras jogadas pelas luzes de Natal no teto.

- Todo dia.

- E?

- E tenho medo - a admissão saiu mais fácil do que ele esperava.

Luca virou-se para encará-lo.

- De quê?

- De tudo. Da cidade grande. De não ser bom o bastante. De - ele engoliou seco - de nunca mais te ver depois que eu for.

Luca ficou quieto por um tempo.

- Eu podia ir com você.

Daniel sentou-se abruptamente.

- Não brinca com isso.

- Não tô brincando - Luca sentou-se também, seu rosto sério. - Eu tenho uma tia no Rio. Podia arrumar um emprego, me inscrever naquela universidade que tem astronomia...

- E sua família? Sua irmã?

Luca olhou para as mãos.

- Mari vai entender. Ela sempre entende.

Daniel tocou seu rosto.

- Você não pode jogar sua vida fora por minha causa.

- Não seria jogar fora - Luca pegou sua mão, apertando. - Seria viver. Com você.

A declaração pairou entre eles, enorme e frágil. Daniel não sabia como responder. Em vez disso, puxou Luca para outro beijo, tentando transmitir tudo o que não conseguia dizer.

Os dias se transformaram em um ritual dourado.

Manhãs trocando mensagens secretas. Tardes no quarto de Daniel quando seu pai trabalhava até tarde. Noites na cabana, aprendendo os mapas dos corpos um do outro.

Até que em uma quinta-feira chuvosa, o universo lembrou-os de que a felicidade deles tinha prazo de validade.

Daniel estava na cozinha fazendo chá quando seu pai chegou mais cedo, acompanhado do Sr. Fernandes, o dono do mercado.

- ...e o filho do Carlos viu os dois juntos no cinema - Fernandes dizia quando Daniel congelou, a xícara escorregando de seus dedos.

O barulho de porcelana quebrando fez os dois homens virarem-se.

- Daniel - seu pai cumprimentou, os olhos estreitos. - O Sr. Fernandes estava me contando algo interessante.

Daniel limpou as mãos suadas na calça.

- O quê?

- Que você anda passando muito tempo com aquele garoto - o olhar de Fernandes era cheio de insinuações. - O loiro, filho da costureira.

- Luca - o nome saiu antes que Daniel pudesse parar. - Ele é meu amigo.

- Amigo - seu pai repetiu, a palavra saindo como um insulto. - Você sabe o que as pessoas estão dizendo?

Daniel sentiu o chão tremer sob seus pés.

- Não ligo para o que falam.

- Você devia! - seu pai bateu o punho na mesa, fazendo os utensílios tremerem. - Já basta você querer estudar essa bobagem de arte. Agora isso?

O sangue zumbia nos ouvidos de Daniel. Eles sabiam. Ou pelo menos suspeitavam.

- Não é o que estão pensando - ele mentiu.

Seu pai estudou-o por um longo momento, então fez algo inesperado - sorriu.

- Claro que não. Você é meu filho, afinal. - Ele virou-se para Fernandes. - O Daniel vai ao baile da escola com a filha do prefeito semana que vem. Não é, Daniel?

Não era uma pergunta. Era uma armadilha.

Daniel olhou para o relógio na parede. 17:43. Luca estaria esperando na cabana em vinte minutos.

- Sim - ele concordou, o gosto amargo da traição na língua. - Vou.

Luca chegou à cabana encharcado da chuva, encontrando Daniel sentado no colchão, segurando um envelope.

- O que é isso? - ele perguntou, sacudindo os cabelos molhados.

Daniel estendeu o envelope sem responder. Luca abriu, seus olhos escaneando rapidamente o conteúdo - uma carta de aceitação da Escola de Belas Artes, uma passagem de ônibus para o Rio e uma quantia em dinheiro.

- Daniel, o que-

- Eu tenho que ir antes - Daniel interrompeu, a voz estranhamente plana. - Domingo.

Luca sentou-se pesadamente.

- Por quê? O que aconteceu?

Daniel contou sobre a conversa na cozinha, sobre o baile, sobre o modo como seu pai olhava para ele agora - como se fosse um estranho perigoso.

- Ele sabe, Luca. Ou pelo menos desconfia. Se eu não for agora... - ele não terminou a sentença.

Luca pegou sua mão. Estava gelada.

- Então eu vou com você.

- Não! - Daniel puxou a mão de volta. - Você não entende? É exatamente isso que ele quer. Que eu fique longe de você.

- E você vai dar o braço a torcer?

- Eu vou sobreviver! - a voz de Daniel quebrou. - Pela primeira vez na vida, eu vejo um futuro, Luca. E não vou deixar ninguém tirar isso de mim. Nem ele. Nem... nem você.

A palavra ficou suspensa entre eles como uma faca. Luca recuou como se tivesse sido atingido.

- Então é isso? A gente se despede aqui?

Daniel fechou os olhos.

- É melhor assim.

- Para quem? - Luca levantou-se, as mãos tremendo. - Porque certamente não é pra mim.

Ele esperou uma resposta que não veio. Com um solavanco, Luca pegou sua mochila e saiu, deixando a porta aberta para a chuva entrar.

Daniel não o seguiu. Apenas ficou sentado no colchão que ainda guardava o calor dos dois, segurando a passagem de ônibus como um bilhete para a liberdade - e uma sentença de solidão.

            
            

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