Capítulo 4 Sangue no Concreto

O céu da Ceilândia amanheceu cinza. Aquele tom de chumbo que parece anunciar tragédia.

Enzo acordou antes do sol nascer, com a cabeça pesada, mas o coração leve. Ao seu lado, Ketlyn dormia profundamente, os cabelos bagunçados espalhados pelo travesseiro, os lábios entreabertos.

Ele a observava como se o mundo pudesse ruir - e tudo o que ele quisesse salvar fosse ela.

Pegou o celular e digitou a última mensagem no grupo secreto com Bira e os homens de confiança:

"Hoje à noite, desço do trono. Bira assume. Discrição total. A favela não pode sentir o cheiro."

Guardou o aparelho e voltou a encarar Ketlyn. Beijou-lhe a testa com um carinho que poucos sabiam que ele carregava.

- Vou sair disso por você... e por mim - sussurrou.

Mas enquanto ele preparava a paz, outros arquitetavam a guerra.

🪁

- Descubra onde tá o Cebola. Se tiver vivo... traga. Eu tenho um plano - ordenou Tigre.

O soldado assentiu e partiu.

Horas depois, encontraram Cebola ferido, rastejando por uma estrada de terra batida.

- Tá vivo. Mas tá fodido - disse um dos capangas.

- Leva pra casa da amante dele, a Carol. Escondido. Em silêncio. Tigre quer ele inteiro.

Na madrugada, Cebola deu entrada no barraco, exausto, sangrando, mas vivo. Tigre queria que ele se recuperasse - precisava dele lúcido para algo maior: tomar o trono de Enzo à força.

🪁

Dias depois...

No depósito de carros roubados, escondido na parte baixa da quebrada, Cebola reunia-se com seus comparsas mais fiéis.

- Ele vai largar? Que piada - cuspiu no chão, sarcástico. - Ninguém larga sendo rei. Só se for otário mesmo.

- Vai passar o trono pro tal do Bira?

- Se o Enzo sair, alguém assume. Mas não vai ser esse Bira.

Foi então que um dos homens entrou, ofegante.

- Chegou a informação: local e hora certa do encontro entre os dois. Hoje. Curva da Fumaça. Vinte pras nove.

Cebola sorriu de canto.

- Então o trono vai cair junto. Bira não vai nem ver de onde veio. E o Enzo vai entender que dar o trono pra outro que não seja o nosso chefe não é uma opção.

Tigre, o verdadeiro chefe por trás da trama, preferia operar nas sombras. Não se mostrava, mas cada movimento da guerra era orquestrado por ele.

🪁

No fim da tarde, Ketlyn recebeu um buquê de rosas vermelhas no escritório. No bilhete escrito à mão, poucas palavras:

"Hoje começa a nossa liberdade. Te espero no nosso lugar, depois das 21h. - Enzo."

Ela sorriu. Não era do tipo romântica, mas aquilo mexeu com algo dentro dela. Não pelas flores, mas por sentir que ele estava mesmo tentando mudar.

🪁

Às 20h45, Enzo já esperava na Curva da Fumaça - local conhecido por rachas ilegais. Estava de camisa preta simples, jeans surrado. Sem ouro, sem arma. Apenas ele... e o desejo sincero de recomeçar.

Mas Bira não chegou primeiro.

Foram três motos.

Três tiros.

Uma emboscada.

Enzo se jogou atrás de um muro improvisado com pneus. O som dos disparos cortou o silêncio da noite. Um homem gritou. Outro caiu da moto. Enzo soube: a paz tinha sido violada.

Minutos depois, Bira chegou, sangrando no ombro.

- Armaram pra mim... o Cebola tá vivo! Mandou três moleques pra me apagar. Só não conseguiram porque o pneu da moto furou e eu consegui me jogar no chão.

- Esse desgraçado... - rosnou Enzo. - Acertar você é me acertar também. E ele sabe disso.

- O que a gente vai fazer?

Enzo fechou os punhos com força.

- Ainda não posso passar o comando. Enquanto esse filho da puta respirar, não tem recomeço. E quem estiver por trás dele vai cair junto.

- A doutora não vai gostar disso, você sabe...

- Ela tem que entender. É pra segurança dela. É pelo nosso futuro.

🪁

Às 21h10, ele chegou ao telhado onde Ketlyn o esperava. Vestido colado vinho, olhar doce e esperançoso. Mas o sangue seco na camisa dele e o corte na sobrancelha mataram o clima num segundo.

- O que aconteceu? - perguntou, alarmada.

- Tentaram me matar.

- Quem?

- Cebola. Sobreviveu à tortura. E tá vindo com sede de sangue. Mas não vai durar muito.

Ketlyn abaixou os olhos, engolindo o choro.

- Hoje era pra ser o começo do nosso "pra sempre".

- Me dá mais um tempo - pediu Enzo, com tristeza no olhar. - Dois dias. Eu resolvo isso. Depois disso, Bira assume. A guerra termina.

- Você confia mesmo nisso?

- Eu confio em nós dois. E isso... isso já me dá mais força que qualquer fuzil.

Ela o abraçou. Tremia. Chorava.

Pelo medo. Pela impotência.

Pelo amor que crescia no meio da violência que ela não queria mais viver.

- Vai pra casa... limpa esse sangue. Amanhã a gente conversa.

Ele beijou sua testa com ternura e partiu. Com o olhar firme, como se já tivesse escrito o amanhã com as próprias mãos.

Ketlyn tentou dormir, mas o enjoo não deixava.

Sentou na cama e colocou a mão na barriga.

- Deve ser por não ter comido nada direito hoje... - sussurrou, mas no fundo, sabia que não era só isso.

🪁

No galpão de Tigre...

- Chefe... eles falharam. Os três tão mortos - disse um dos comparsas.

Tigre bateu a mão na parede, enfurecido.

- MERDA! Vocês não conseguem fazer NADA direito, seus incompetentes!

Cebola tentou se justificar:

- Achei que dava pra resolver com três. Tava tudo certo, chefe...

- Você achou ERRADO! Agora vai ouvir meu plano, e vai executar sem falhas, ou EU te mato.

- Qual o plano?

- O ponto fraco do Enzo... é a doutora. Amanhã, a gente vai sequestrar ela. Sem erro. Sem barulho. E sem deixar rastro.

- Qual o horário?

- Amanhã eu falo. Fiquem de prontidão. E ouçam bem: sem erro.

Todos assentiram em uníssono.

Mas nas sombras, Leleco ouvia tudo - infiltrado a mando de Enzo.

Só que havia um problema: Tigre era esperto.

Sabia que havia um X9 entre eles... só não sabia quem.

Por isso, não revelou nem o horário, nem a rota. Tudo seria decidido depois, em outro galpão, apenas com seus dois homens de confiança: Cebola e seu primo Lobo Guará.

E, enquanto a guerra tomava forma...

O amor de Ketlyn e Enzo era o único que ainda sangrava no concreto com as incertezas.

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