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O despertador tocou às 6h12.
Ketlyn virou na cama, praguejando baixinho. A luz da manhã atravessava as cortinas como navalha, cortando o escuro com crueldade. Ela se sentou, passou a mão pelo rosto e pegou o celular no criado-mudo. Tela trincada, como seu estado emocional.
Notificações ignoradas. Corações no Instagram, mensagens não lidas, um áudio de Enzo. Mas o que prendeu sua atenção foi o app de ciclo menstrual.
"Atraso: 6 dias."
As palavras queimavam na tela.
O sangue fugiu do rosto.
Levou um tempo até entender o que aquilo realmente queria dizer.
- Não... - murmurou, como se pudesse recusar o universo.
Lembrou-se da última vez que esteve com Enzo. No escritório dele, calor, pressa, desejo. Nenhuma proteção. Nada entre os dois além de promessas murmuradas em meio ao caos.
Desceu da cama como quem pisa em cacos. No caminho até a cozinha, os pensamentos explodiam como bombas silenciosas.
"Eu tô grávida?"
"E se for verdade?"
"E se... eu tiver carregando um filho dele?"
Abriu o app da farmácia, pediu um teste. Entrega em 15 minutos. O tempo mais longo da sua vida.
Quando a campainha tocou, ela já estava com a mão trêmula. Pegou a sacola, entrou no banheiro e trancou a porta.
O banheiro parecia mais frio do que o normal. Ketlyn sentou-se na privada, o teste de farmácia tremendo entre os dedos. O silêncio da casa só era quebrado pelo tique-taque do relógio da cozinha e pelo som abafado de sua respiração acelerada.
O visor do teste demorou uma eternidade para mudar. E quando finalmente mudou, ela sentiu o mundo girar.
Duas linhas.
Duas malditas linhas rosas.
O resultado apareceu com crueldade e precisão:
POSITIVO.
O mundo não girava. Ele capotava.
Ketlyn não sabia se ria ou chorava. encostou na parede fria , puxando o ar aos poucos, como quem aprendia a respirar de novo.
As lágrimas vieram mesmo assim, sem permissão. Ela pressionou a mão contra a boca, sufocando o soluço que veio com força. Como aquilo podia estar acontecendo - E agora...? - sussurrou, olhando pro teto. - Enzo...
Levantou-se devagar, lavou o rosto e encarou seu reflexo no espelho. Os olhos inchados, a expressão assustada, mas firme. Tinha sido criada ali, na Ceilândia, entre os muros rachados e as janelas com grades. Sabia o que era sobreviver. E se fosse pra criar uma criança nesse mundo, ela faria isso com a mesma coragem com que enfrentava as audiências e os bandidos.
Mas não podia ficar chorando . Não agora. Tinha uma audiência à tarde. Um cliente preso preventivamente por latrocínio. O tipo de caso que exigia frieza. Técnica. Estratégia.
Ela se arrumou como pôde. Vestiu um terninho vinho escuro, prendeu os cabelos com precisão de guerreira e passou o batom como quem desenha uma armadura. Olhou no espelho e repetiu:
- Você vai dar conta. Como sempre deu.
Desceu no elevador. A portaria estava estranhamente silenciosa.
Olhou ao redor. Nada de Darlan, seu segurança pessoal.
- Estranho... - murmurou, franzindo o cenho.
Saiu do prédio desconfiada. Seus saltos ecoavam no concreto com mais peso do que o normal. Olhou pro lado, depois pro outro. Nenhum sinal de Darlan.
Estava a poucos passos do carro quando alguém surgiu por trás.
Braço forte no pescoço. Cheiro de éter. Pano na boca.
- Mmhhf...! - tentou gritar, mas não deu tempo.
O mundo apagou como luz de poste na quebrada.
Foram segundos de luta para manter-se acordada... e então, o nada. O sequestrador usava luvas, máscara e executou o serviço com frieza profissional.
Jogaram o celular dela num bueiro. A van preta arrancou sem placa, cruzando a Ceilândia como um vulto. Invisível. Letal.
Ninguém viu. Ninguém ouviu. E ninguém poderia ajudar.
🪁
O mundo voltou devagar, como se saísse debaixo d'água.
A primeira coisa que Ketlyn sentiu foi o frio. Depois, o gosto metálico na boca. E, por fim... o medo, rastejando por sua espinha como cobra.
Estava deitada num colchão velho, jogado no canto de um cômodo mofado. O teto era de zinco, enferrujado nas bordas. Um ventilador de parede quebrado, pendurado por fios expostos.
O cheiro era de mofo, cigarro e abandono.
As mãos estavam amarradas com lacres de nylon. Os tornozelos também. Boca livre, mas não adiantava gritar: pela fresta da porta, só se via mato. Nada de civilização.
Um galpão no meio do nada.
Ket respira fundo, tentando organizar os pensamentos. O coração disparava num ritmo descompassado, quase selvagem.
Lembrou do resultado do teste. Lembrou de Enzo. Do medo que agora crescia dentro dela.
"Se eles descobrirem... meu Deus..."
Lágrimas desceram, silenciosas, mas o olhar endureceu. Estava com medo, sim. Mas não era fraca. Nunca foi.
Ela só precisava entender quem a tinha levado. E por quê.
Do lado de fora, passos. Dois homens conversavam, rindo baixo. Vozes que não reconheceu. Um sotaque puxado, típico da Zona Oeste. Um deles falou:
- O chefão mandou não encostar nela. Diz que ela é chave pro que tá vindo.
- E se ela tentar fugir?
- Avisa que os pais dela morrem. Pronto.
Ket fechou os olhos. A dor no peito era tão grande que pareceu física.
"Meus pais não... Não posso fazer nada imprudente."
Enquanto isso, na cidade, o caos tomava forma.
Darlan acordou no banco da frente do carro de Ketlyn, desorientado. Sentiu a cabeça latejar. Um corte na têmpora esquerda sangrava devagar. Quando tentou se levantar, notou que estava sozinho.
Olhou ao redor: o carro estava estacionado em uma rua lateral, longe do prédio dela. Rápido, puxou o celular e ligou para Enzo.
- Chefe... a doutora... a Ketlyn foi levada... - disse, ainda ofegante.
Do outro lado da linha, silêncio.
Enzo estava no escritório, recostado na cadeira, quando ouviu a notícia.
- COMO ASSIM, DARLAN?! - a voz explodiu. - VOCÊ TAVA COM ELA, PORRA!
- Eu fui apagado. Quando acordei, ela já não tava mais lá. Eles levaram ela, chefe. Sabiam todos os movimentos... cada passo. Me deixaram no carro pra mandar recado.
Enzo ficou de pé num pulo. Os olhos dele, vermelhos, se tornaram duas brasas.
- Eu devia ter acabado com o Cebola quando tive chance... - murmurou, socando a mesa com força. - Eu jurei proteger ela. JUREI!
A mão tremia. O mundo dele ruía. E o pior? Não tinha o relatório de Leleco.
Leleco nunca falhava.
Isso acendeu um alerta.
- Bira... - chamou, a voz mais baixa, mais grave. - Descobre por que o Leleco não reportou. Agora.
Na quebrada, o silêncio era o novo inimigo.
🪁
Horas antes de tudo desabar, Leleco estava deitado no alojamento dos soldados de Cebola, tentando descansar. O corpo exausto pesava mais do que conseguia suportar, mas o sono não vinha. Foi então que ouviu vozes sussurradas na sala ao lado.
- O Leleco tá dando todos os passos pra ele.
A frase bateu como um tiro no peito. Leleco arregalou os olhos. Um arrepio atravessou sua espinha.
"Cebola já sabe... eles sabem..."
Sem pensar, levantou-se em silêncio. Descalço, cruzou o corredor como um gato ferido. Sabia que, se fosse pego, não teria segunda chance. Antes que pudessem percebê-lo, saiu pelos fundos, pulou o muro e desapareceu no mato, deixando para trás o celular - e com ele, sua única linha direta com Enzo.
Correu sem parar por quilômetros, coração disparado, o som das folhas secas sob os pés misturando-se à adrenalina que pulsava em suas veias. Um galho cortou sua testa, mas ele não parou. Sabia que sua vida estava por um fio.
O sol se escondia atrás de nuvens pesadas quando Leleco reapareceu. Cambaleante, olhos fundos, corpo coberto de arranhões e o sangue seco no canto da testa.
Bira o encontrou próximo ao viaduto do Pistão Sul, andando como um zumbi no meio da rua.
- Leleco?! - Bira freou bruscamente, saindo do carro com a pistola em punho. - Que porra aconteceu com você, irmão?
O segurança balbuciou algo ininteligível. Só depois de Bira jogar água em seu rosto e enfiá-lo dentro do carro foi que as palavras fizeram sentido.
- Foi emboscada... eles sabiam, Bira... estavam esperando...
- Quem?! Cebola? Foi ele?!
- Não era só o Cebola - respondeu Leleco, os olhos arregalados de puro terror. - Tem alguém mandando nele. Um cara grande... maior do que a gente imaginava. Mas eu não vi o rosto. Só ouvi chamarem ele de Tigre.
O sangue de Bira gelou. O nome reverberou como trovão na mente dele.
Tigre.
Até então, apenas um sussurro nas vielas da Ceilândia. Um nome falado com medo. Um fantasma com sede de trono.
- Vou levar isso pro Enzo. Você precisa de hospital.
Leleco agarrou seu braço com força.
- Não. Me leva pra casa da Dona Ruth. Eu preciso ver minha mãe... por favor, Bira.
Bira assentiu, silencioso. Mas no fundo sabia: se Tigre estava de volta, o inferno também estava.
🪁
No galpão, Ketlyn ouvia passos. Dois pares. Um deles mais leve, talvez de uma mulher. O outro, pesado, com botas que faziam o chão vibrar.
A porta abriu com um rangido irritante.
Um homem entrou. Baixo, forte, rosto coberto por um capuz tático. Luvas pretas. Atrás dele, uma mulher - magra, morena, olhos pintados de preto e uma tatuagem de onça no braço esquerdo.
- Tá acordada, princesa? - disse a mulher, com um sorriso torto. - Que bom. O patrão quer conversar.
- Patrão...? - Ketlyn ergueu o rosto, desafiadora. - Ele tem nome ou só covardia?
O homem se aproximou rápido e deu um chute no colchão, bem próximo ao corpo dela. Ela não se encolheu.
- Se fosse outro, você já tinha levado na cara. Mas o chefão disse pra tratar com cuidado. E isso é o mais gentil que você vai ver por aqui, doutora - disse a mulher, puxando uma cadeira e sentando-se de frente. - A gente não quer te machucar... por enquanto.
- O que vocês querem? Dinheiro?
- Você acha que isso é sobre dinheiro? - a mulher riu. - Isso é sobre poder. Sobre sangue. Sobre vingança. Você é o elo fraco de um homem que acha que pode abandonar o trono e dar pro amigo dele.
Ketlyn entendeu na hora. Isso era sobre Enzo. Sobre o passado dele. Sobre o peso das escolhas que ele tentou largar... mas que nunca o deixaram de verdade.
- Ele vai vir por mim - disse, firme. - Vocês sabem disso, né?
A mulher sorriu.
- É o que a gente espera, docinho. Porque quando ele vier... a gente vai derrubar o rei.
🪁
Na mansão, Enzo andava de um lado pro outro. O olhar perdido nas janelas.
- Eu falei que ia protegê-la, Bira. Eu prometi isso pra mim mesmo, cara. - A voz dele estava rouca, grave, como se cada palavra pesasse toneladas.
- Eu sei, irmão. E a gente vai resgatar a Ketlyn. Mas agora a gente tem um nome. Tigre. Esse filho da puta tava se escondendo... até agora.
Enzo olhou pra ele com olhos em chamas.
- Quero tudo. Nome, rosto, endereço. Quero saber quem banca ele, quem protege, onde caga, onde dorme. Se tem mulher, filho. Quero o CPF desse desgraçado!
Bira assentiu, ligando pra rede de informantes.
- E mais uma coisa, Bira - Enzo disse, se aproximando devagar. - Sem piedade. Quem levantar a mão contra a minha mulher... não vai ver o amanhã.