Capítulo 2 Escolhas...

"Como é?" - Minha voz sobe, mais alta do que deveria, enquanto me levanto bruscamente da cadeira.

Ele, com a tranquilidade de quem decide quem vive e quem morre, sequer pisca. Desfaz lentamente a forma demoníaca - chifres retraindo, olhos brilhando menos - e assume novamente uma aparência humana, limpa, impecável. Cruel.

"Você me ouviu. Não vou repetir." - Ele se senta na cadeira atrás da mesa como se acabasse de assinar um contrato qualquer.

Minha mente gira. Eu me inscrevi para gestora de T.I. Simples. Técnico. Frio. Computadores não pedem sua alma em troca de nada. Mas agora... agora sou secretária. SECRETÁRIA.

E que diabos foi essa entrevista? Porque ele se transformou? Pra medir meu medo? Testar o quanto eu aguentava antes de correr? Ou só por diversão?

"Vá até o andar sessenta e cinco e fale com Merlin" - diz ele, casual, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. "Ela era a antiga secretária. Vai te treinar."

Pega o telefone, digita um número com tanta calma que chega a me dar vontade de esganá-lo. E então, sem nenhum pudor, sem nem sequer me olhar:

"Qual o seu número de peça íntima?"

Pisco. Uma. Duas. Três vezes.

"O quê?" - solto, sem acreditar no que meus ouvidos acabaram de captar.

Ele não se move, não sorri, não pisca. Só cruza as pernas, entediado.

"Sinto seu cheiro a quilômetros. Não vou trabalhar assim."

A gargalhada escapa antes que eu consiga segurar. Um riso seco, descrente, quase histérico.

"Você provocou isso" - aponto, cruzando os braços. "e agora quer reclamar do meu cheiro?"

Me encara. Finalmente. Como se, por um segundo, estivesse tentando decifrar que espécie de criatura eu sou. Spoiler: sou só uma humana teimosa que ainda não aprendeu a calar a boca.

"Me diga, demônio..." - minha voz desce uma oitava, carregada de sarcasmo. "o que, exatamente, te faz pensar que eu vou trocar a minha peça íntima... só porque seu nariz sensível não aguenta o próprio veneno?"

O ar pesa. O silêncio não é vazio - é cheio. Cheio dele.

Os olhos dele, que até agora alternavam entre um azul cristalino e ameaçadores tons de vermelho, escurecem. Não é só a íris. O branco dos olhos se apaga, tomado pela escuridão, como se o próprio vazio do inferno habitasse ali.

"Você não tem muito amor à vida, não é, Srta...?" - sua voz arranha, arrasta, desliza pelo meu corpo como uma lâmina quente.

Sorrio. Desafiando o diabo sentado à minha frente.

"Está tão óbvio assim?"

Ele ri. Um som rouco, desacreditado, que reverbera pelo peito. Não é um riso divertido - é um riso de descrença. De quem achou, por um segundo, que já tinha visto de tudo.

Ele se levanta. A cadeira range.

Os passos são lentos, calculados, quase felinos. A gravidade parece curvar-se ao redor dele.

A poucos centímetros de mim, para. E, de perto, é pior. Ou melhor. Ou os dois. O cheiro é mistura de metal queimado, incenso proibido e algo que não consigo nomear - puro pecado em forma sólida.

Seus olhos agora estão fixos nos meus. Azul cristalino no centro, sangrando para o vermelho nas bordas, como uma rachadura prestes a romper.

"Você é... interessante" - arrasta a palavra como quem prova algo novo pela primeira vez. "Isso pode ser... divertido."

Inclina-se, a boca perigosamente perto do meu ouvido. Sua respiração quente faz minha espinha arrepiar contra a vontade.

"Vá se trocar, humana. Merlin te espera. E não me faça..." - desliza os dedos pelo meu queixo, forçando-me a erguer o rosto até ele. "reconsiderar sua utilidade neste lugar."

Se afasta. Sorri. Aquele sorriso que poderia ser colocado em um manual de "Aqui começa sua ruína".

"Seja bem-vinda... à última escolha que você vai fazer."

As portas da sala se abrem sozinhas atrás de mim, rangendo como se protestassem. Olho uma última vez para o demônio à minha frente. E, por um segundo, uma dúvida surge: quem, exatamente, está brincando com quem aqui?

Me viro. Saio. Mas antes que as portas se fechem, ouço sua voz mais uma vez, baixa, mas afiada o suficiente para cortar ossos:

"E não se atrase, secretária. Eu odeio esperar."

Reviro os olhos com a sensação de que deixo para trás não um escritório... mas a antessala do inferno.

Entro no elevador e aperto o botão para o andar sessenta e cinco. O visor holográfico pisca em vermelho - Merlin - como um aviso, não uma identificação.

As portas se abrem com um sibilo. E então percebo, de imediato: trabalhar diretamente com um demônio... talvez nem arranhe a superfície dos meus problemas.

Não é um andar comum. Nem uma sala de escritório. O que me espera é um território completamente alienígena.

O chão parece pulsar. O ar vibra com energia densa, sufocante. Criaturas demoníacas, algumas com formas que minha mente se recusa a entender, caminham livremente entre estações de trabalho improvisadas, cubículos feitos de ossos, fios que parecem veias e paredes que... respiram.

Ou o que restou delas.

A estrutura, ou o que deveria ser uma, está destruída. Fragmentada. Como se um terremoto tivesse explodido o concreto por dentro, e a gravidade fosse apenas uma sugestão. Há escombros no teto e fogo saindo de frestas no chão.

Mas nada desmorona. Porque isso aqui não segue leis físicas. Só segue uma: o caos reina.

E no centro disso tudo, sentada em uma cadeira flutuante feita de correntes douradas e fumaça negra, está ela.

Merlin.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022