Capítulo 3 Merlin

O trono de correntes e fumaça oscila levemente, como se respirasse junto com ela.

Merlin.

Se o nome evoca lendas humanas, a criatura diante de mim não tem nada de mítico, ela é real. Real demais.

Seus cabelos brancos e longos flutuam ao redor do rosto como tentáculos de luz pálida. A pele é escura como ônix, sem falhas. Os olhos? Dois buracos negros que devoram a luz ao redor. Eles me observam como quem estuda um inseto que caiu na armadilha... e ainda se debate.

"Humana?" - Sua voz soa como um eco vindo do fundo de uma caverna, antiga, poderosa e absolutamente calma. Assustadoramente calma.

"Sim. Vim... para o treinamento" - digo, tentando manter a postura. Se tem uma coisa que aprendi nesse mundo é que fraqueza não sobrevive. Nem mesmo por cortesia.

Ela me observa com atenção. Por longos segundos. O silêncio pesa como se o próprio ar estivesse esperando sua reação. Até que ela sorri. Não é um sorriso gentil, nem abertamente cruel. É pior: é um sorriso sábio. De quem já viu humanos morrerem das formas mais lentas e interessantes.

"Nova secretária dele, então." - Não diz o nome. Ninguém diz. Como se o som por si só fosse proibido.

"Contra minha vontade" - retruco com amargor.

Ela ri. É um som que deveria vir acompanhado por trovões e sangue chovendo do teto.

"Ah, todas nós começamos assim."

"Nós"? A palavra me incomoda.

Ela desliza para fora do trono - e sim, desliza, porque seus pés mal tocam o chão. Seu corpo se move como névoa inteligente.

"A única forma de sobreviver por aqui é fingir que escolheu estar." - Seu tom agora é mais sério. "E fazer parecer que está se divertindo enquanto isso. Mesmo que esteja engolindo o próprio medo."

Sigo atrás dela por um corredor curvo, onde as paredes parecem feitas de carne viva misturada com vidro quebrado. Ninguém fala. Mas todos olham. Como se pudessem sentir o cheiro da carne fresca. E eu sou o prato do dia.

Um demônio passa por mim lambendo os lábios. Outro, com três cabeças e uma pasta de couro em mãos, murmura algo que soa como uma prece ao contrário. Eu finjo que não ouço. Fingir é uma habilidade de sobrevivência nesse lugar.

Chegamos a uma sala onde o mundo muda novamente.

As paredes aqui não sangram. Mas também não são normais.

Livros flutuam em espirais de fogo. Mapas se desenham sozinhos sobre mesas. E há espelhos. Espelhos que não mostram reflexo. Um deles, ao me olhar de relance, sorri. Mas eu não estava sorrindo.

"Bem-vinda ao setor de controle simbólico." - Merlin estala os dedos e um monte de arquivos desce do teto como chuva. "Aqui guardamos informações que nem mesmo ele acessa diretamente."

Me viro para ela, desconfiada.

"Então por que me trouxe aqui?

Ela estuda minha expressão. E responde com calma:

"Porque o caos gosta de te olhar de perto. E eu gosto de ver o caos incomodado."

"Poético" - murmuro.

"Mortal" - ela corrige.

Ela aponta para a mesa no centro da sala, onde símbolos demoníacos giram lentamente sobre papéis antigos, alguns escritos com o que me parece... sangue seco.

"Primeira lição: nada é só papel por aqui. Alguns documentos sussurram verdades. Outros mentem. Você vai aprender a diferença. Ou vai enlouquecer tentando."

Aproximo-me. Estendo a mão para o primeiro arquivo.

"E segunda lição?"

Merlin sorri mais uma vez, com os olhos escurecendo levemente.

"Segunda lição, humana... é nunca me perguntar qual é a terceira."

Enquanto começo a separar os arquivos flutuantes, um deles escapa da pilha e cai sobre a mesa com um estrondo seco.

Não parece diferente dos outros, exceto por uma luz vermelha que pulsa em sua borda. Meus dedos encostam nele... e a tinta se move como se sentisse minha presença.

Palavras em um idioma proibido se reorganizam diante dos meus olhos. E então, surge:

"SUJEITO: [está uma língua que não consigo ler]"

"CANDIDATO(A): SRTA. Alloy"

"COMPATIBILIDADE PARA MARCA: 96%"

Congelo. O coração falha uma batida.

Há mais. Uma nota escrita à mão, em tinta dourada que queima ao ser lida:

"Alta resistência. Risco elevado. Aproximação iniciada."

Olho para Merlin. Ela já me observa, de braços cruzados.

"Você abriu?" - pergunta, sem emoção.

"Estava entre os outros" - respondo, quase sem voz.

Ela se aproxima. Toca o canto do papel.

"Isso não era pra estar aqui."

"O que é essa... marca?"

-"Algo que liga dois corpos. Duas essências. Duas almas." - Ela me encara fundo. "Algo que não pode ser desfeito."

Silêncio. Um frio sobe pelo estômago.

"Isso tem a ver com ele?" - pergunto.

Ela não responde. Só dá um passo para trás.

"Hora da sua pausa. Vá tomar ar antes que o arquivo devore sua sanidade."

Eu me viro, zonza. Antes de sair, Merlin fala uma última vez:

"Se você for marcada, humana... não será mais sua."

"De quem serei, então?"

"Dele, é claro." - E seus olhos brilham, satisfeitos. "Como todo o resto."

Saio da sala como se tivesse andado por dentro de um pesadelo com perfume de enxofre. O calor me persegue até o corredor, como se a própria sala não quisesse me deixar ir.

Respiro fundo. Ou pelo menos tento. O ar aqui não tem cheiro de oxigênio. É uma mistura densa de metal, fumaça e algo mais... algo que arrepia a pele por dentro.

Caminho até o banheiro mais próximo. A placa na porta está rachada e o símbolo "feminino" parece ter sido riscado por garras.

Entro.

A luz treme. O espelho embaçado não reflete nada de imediato. Me aproximo, ajeito os cabelos como se esse gesto pudesse segurar a sanidade no lugar.

Então olho meu reflexo de verdade.

E ele não está me seguindo.

Meu corpo ali, mesmo ângulo, mesma expressão. Mas os olhos...

Vermelhos.

Não só vermelhos. Brilhantes. Vibrantes. Um vermelho que pulsa com fome. Como os dele.

Dou um passo para trás, o coração disparado, a garganta seca. O reflexo sorri. Um sorriso torto, cheio de escárnio e promessa.

"Já começou." - ouço. Ou talvez só imagine. Mas a voz... é a dele. Do CEO.

Piscar não adianta. Tocar o espelho menos ainda. O reflexo volta ao normal alguns segundos depois, como se nada tivesse acontecido.

Mas dentro de mim, algo grita que tudo mudou.

Meus dedos tremem.

Me viro, saio rápido, sem olhar para mais nada. Preciso de ar. Preciso sair daquele andar.

Pego o elevador, aperto o térreo. O visor pisca uma, duas vezes, antes de aceitar.

Enquanto desço, meu corpo parece pesado. Como se algo estivesse tentando se acomodar dentro de mim. Algo quente... e perigoso.

Mas o elevador não para no térreo.

Ele para... no andar 13.

Um andar que, oficialmente, não existe.

As portas se abrem com um rangido grave.

Luz nenhuma.

Som nenhum.

Mas lá está ele.

Encostado na parede como se me esperasse o tempo todo.

O CEO.

Terno impecável, olhos novamente azuis - mas agora, ainda mais intensos. Ele não sorri. Não diz uma palavra.

Só me encara.

E eu não sei se estou presa ali com ele...

Ou se é ele quem finalmente decidiu me deixar entrar no seu domínio.

O elevador fecha as portas atrás de mim.

O andar 13 se tranca.

E ele diz, pela primeira vez, meu nome.

Mas ele diz como se fosse dele.

            
            

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