Capítulo 4 Andar 13

Saio da sala como se tivesse andado por dentro de um pesadelo com perfume de enxofre. O calor me persegue até o corredor, como se a própria sala não quisesse me deixar ir.

Respiro fundo. Ou pelo menos tento. O ar aqui não tem cheiro de oxigênio. É uma mistura densa de metal, fumaça e algo mais... algo que arrepia a pele por dentro.

Caminho até o banheiro mais próximo. A placa na porta está rachada e o símbolo "feminino" parece ter sido riscado por garras.

Entro.

A luz treme. O espelho embaçado não reflete nada de imediato. Me aproximo, ajeito os cabelos como se esse gesto pudesse segurar a sanidade no lugar.

Então olho meu reflexo de verdade. E, graças aos céus, ele não está me seguindo.

Meu corpo ali, mesmo ângulo, mesma expressão. Mas os olhos... Vermelhos.

Não só vermelhos. Brilhantes. Vibrantes. Um vermelho que pulsa com fome. Como os dele.

Dou um passo para trás, o coração disparado, a garganta seca. O reflexo sorri. Um sorriso torto, cheio de escárnio e promessa.

"Já começou." - ouço. Ou talvez só imagine. Mas a voz... é a dele. Do CEO.

Piscar não adianta. Tocar o espelho menos ainda. O reflexo volta ao normal alguns segundos depois, como se nada tivesse acontecido.

Mas dentro de mim, algo grita que tudo mudou.

Meus dedos tremem.

Me viro, saio rápido, sem olhar para mais nada. Preciso de ar. Preciso sair daquele andar.

Pego o elevador, aperto o térreo. O visor pisca uma, duas vezes, antes de aceitar.

Enquanto desço, meu corpo parece pesado. Como se algo estivesse tentando se acomodar dentro de mim. Algo quente... e perigoso.

Mas o elevador não para no térreo.

Ele para... no andar 0.

Um andar que, oficialmente, não existe.

As portas se abrem com um rangido grave.

Luz nenhuma.

Som nenhum.

Mas lá está ele.

Encostado na parede como se me esperasse o tempo todo.

O CEO.

Terno impecável, olhos novamente azuis, mas agora, ainda mais intensos. Ele não sorri. Não diz uma palavra.

Só me encara.

E eu não sei se estou presa ali com ele...

Ou se é ele quem finalmente decidiu me deixar entrar no seu domínio.

O elevador fecha as portas atrás de mim. O ar no andar 0 tinha gosto de aço e coisa velha.

Não o tipo de mofo comum a prédios abandonados, mas o gosto de memória podre. Como se cada partícula de poeira ali soubesse um segredo que ninguém devia ter ousado escutar.

As luzes do teto piscavam, nervosas.

Talvez por causa dele.

Ele estava ali.

Encostado na parede oposta, como quem ocupa o mundo sem pedir licença. Braços cruzados. Terno preto. Olhos de aço. E silêncio. Um silêncio que parecia... proposital. Quase confortável demais.

Por um instante, desejei que ele falasse qualquer coisa só pra me lembrar que era real. Mas ele só me observava, como se estivesse esperando eu mesma descobrir o motivo de estar ali.

"Você me trouxe aqui?" - minha voz saiu mais firme do que eu esperava.

Talvez porque o medo, nesse ponto, já tivesse dado lugar a outra coisa. Não coragem. Algo mais... sujo. Mais íntimo.

"Não." - Foi só isso que ele disse.

Seco. Como se a verdade não precisasse de esforço. Como se ele só falasse quando a verdade fosse inevitável.

Mas os olhos... os olhos disseram outra coisa. Eles sabiam.

Dou um passo adiante. O elevador atrás de mim fechou as portas devagar, como se não quisesse me interromper. Agora estávamos sozinhos e eu sabia, com cada osso do meu corpo, que aquele não era um andar qualquer.

"Esse lugar não existe." - Falo mais pra mim do que pra ele.

Ele apenas ergue uma sobrancelha, um gesto sutil que diz: e o que existe, humana?

Havia quadros nas paredes. Rasgados. Queimados. Não dava pra entender se foram pintados com tinta ou sangue antigo. O chão rangia, mesmo quando ninguém se movia. Palavras e símbolos dançam pelo lugar, como se estivesse fazendo algum tipo de ritual.

E ao fundo... uma porta.

Só uma.

Fechada por correntes e um selo que queimava em vermelho.

"O que é isso?" - pergunto.

"Um lugar onde os não escolhidos não entra."

"E por que me trouxe aqui?"

"Você entrou sozinha."

Ele se afastou da parede com um movimento calmo demais, elegante demais. Cada passo dele fazia o mundo parecer menor, como se ele carregasse gravidade própria.

Parou a um metro de mim.

"Você cheira a ruptura."

"A quê?"

"Há algo em você... desajustado. Como se seu corpo estivesse onde deve, mas sua alma... já tivesse visitado outros lugares."

Senti um arrepio subir por dentro da espinha, lento, como um aviso vindo de algum lugar que minha lógica não alcançava.

"E isso é ruim?" - perguntei.

Ele inclinou levemente a cabeça.

"Isso é perigoso."

"Para mim?"

"Para todos."

O silêncio caiu entre nós de novo, mas dessa vez não era vazio. Estava carregado. Não de tensão sexual barata - mas de reconhecimento. De algo primitivo, que existia além da linguagem.

Um sussurro invisível, dizendo:

Vocês dois se conhecem. Mesmo que ainda não saibam como.

E então ele fez algo que não esperava.

Disse meu nome. Um nome que apenas em meus sonhos ouvi alguém chamar.

Disse como se estivesse tocando minha espinha com a língua. Como se cada sílaba contivesse história.

"Como sabe desse nome?"

Ele só me olhou. Aqueles olhos mudavam com a luz. Azul? Cinza? Vermelho? Era como olhar pra uma tempestade atrás de uma vidraça.

"Você acha que foi escolhida por quê?"

Meus lábios abriram, mas nenhuma resposta veio.

"Não sou a primeira, né?" - arrisco.

Ele hesita. Uma sombra real passa por seu rosto.

"Não. Mas talvez... seja a última."

Antes que eu pergunte mais, o elevador se abre sozinho. Ele não me manda embora, nas também não me impede.

Só diz, como quem escreve uma sentença:

"Não entre naquela porta, humana. Não enquanto ainda for só isso."

E eu não sei se ele quis dizer só humana.

Ou só minha.

                         

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