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O amanhecer caiu denso e úmido sobre a cidade. No quarto de Amélia, o silêncio foi subitamente quebrado pelo grito estridente do telefone fixo, aquele que quase nunca tocava e parecia preso em outra era. Eram 3h17 da manhã.
Amélia acordou de um sono agitado, confusa, com o coração batendo forte no peito, como se já soubesse que aquela ligação não traria boas notícias. Ela estendeu a mão desajeitadamente e atendeu.
"Alô?", murmurou, a voz ainda carregada de sono.
"Amélia..." A voz do outro lado era inconfundível. Luciano. Mas havia algo em seu tom, uma seriedade que a fez sentar-se abruptamente. "Algo está acontecendo na Fundação. Houve um incêndio."
Por um segundo, seu cérebro não processou as palavras. Incêndio. Fundação. O que significavam juntas? Que parte do seu mundo acabara de ser destruída pelo fogo?
"O que... o que você está dizendo?" "Os bombeiros já estão lá. Alguém causou isso, Amélia. Não foi um acidente."
Ela sentiu algo se partir no peito. Pulou da cama sem pensar. Vestiu-se às pressas, sem prestar atenção ao que vestia, tremendo. Luciano continuou falando com ela ao telefone, suas frases entrecortadas, anotando as condições do prédio, suas descobertas iniciais. Mas ela não estava mais ouvindo com clareza. Havia entrado em um modo de emergência que a fazia sentir cada batida do coração como um golpe.
"Encontraram... algo na porta", disse Luciano, mais baixo, quase como se não quisesse que ninguém mais ouvisse.
"O quê?"
"Uma fotografia. Aparentemente... é de Rafael. Queimado, meio destruído. É uma mensagem."
Um silêncio pesado pairou entre eles do outro lado da linha.
"Estou indo para lá", foi tudo o que Amélia conseguiu dizer antes de desligar.
A cidade parecia diferente naquela manhã: úmida, sonolenta, as ruas brilhando com a garoa recente. Amelia dirigiu sem olhar muito atentamente, com as mãos congeladas agarrando o volante. Sua mente corria mais rápido que o carro, repetindo imagens da Fundação, das pessoas que trabalhavam lá, do propósito que tanto se esforçaram para construir.
Ela chegou ao local trinta minutos depois. As chamas haviam desaparecido, mas o cheiro foi a primeira coisa que a atingiu: uma mistura nauseante de madeira carbonizada, plástico derretido e algo mais, algo azedo, como o rastro invisível do medo. As luzes dos bombeiros ainda piscavam e a rua estava isolada com fita amarela. Jornalistas começavam a aparecer, câmeras em punho, fazendo perguntas frias.
Quando Amelia saiu do carro, um jovem bombeiro se aproximou dela.
"Você faz parte do conselho?"
"Sou Amelia De la Vega. Sou a fundadora."
O jovem assentiu respeitosamente e a conduziu pelos escombros úmidos. O ar estava carregado de fumaça e cinzas. Cada passo que dava parecia uma traição: às crianças que ali eram cuidadas, aos voluntários, aos sonhos que haviam se enraizado naquele prédio. À sua própria história.
A porta da frente estava carbonizada, escancarada, como uma ferida aberta. No chão, encostada na moldura, estava a foto. Amélia a viu antes que lhe apontassem. Ela se abaixou lentamente, como se seu corpo soubesse que estava prestes a carregar algo pesado.
Era uma foto antiga, carbonizada nas bordas. Mas não havia como confundir: era Rafael. Seu pai. Implacável, com aquele rosto pétreo que a atormentara por tanto tempo. A fuligem marcava sua testa como uma máscara negra. No verso, alguém havia rabiscado uma palavra com tinta borrada:
"Justiça".
Amélia engasgou. O desgosto era físico, penetrante. Como podiam usar a imagem de seu pai, tão quebrado e violento, como símbolo para enviar uma mensagem tão cruel? Como podiam transformar a história de sua família em uma ameaça? Ela ficou ali, agachada, mal respirando, o peito apertado, as lágrimas lutando para escapar.
Luciano chegou logo depois. Seu rosto estava tenso e, assim que a viu, caminhou até ela.
"Eu vi", disse ele. "Eu também vi. Alguém está jogando sujo, Amélia. Isso não é apenas um ataque à Fundação. É pessoal."
Amélia olhou para ele sem dizer nada, mas seu rosto era um espelho de raiva reprimida.
Tormento do Passado
Enquanto os especialistas começavam a tirar fotos e coletar os restos mortais, Amélia recuou alguns metros e sentou-se em um banco de cimento. Ela olhou para o prédio enegrecido, com os olhos cheios de lembranças.
Ela se lembrou de quando lançaram a pedra fundamental, da primeira sala de aula pintada com cores vibrantes, da primeira criança a receber uma bolsa de estudos. O esforço investido não apenas em tijolos, mas em esperança. E agora... todo esse esforço era marcado por fogo e medo.
"Isso não é apenas vandalismo", disse Luciano, sentando-se ao lado dela. "Isto é um aviso. Eles estão nos dizendo que sabem quem somos. Querem que nos lembremos de onde viemos... e a quem não perdoamos."
Amélia fechou os olhos por um instante. Rafael. O nome queimava mais do que a fumaça da fogueira. Quanto restava sem solução naquela história? Que feridas do passado estavam voltando para cobrar seu preço?
"Eles vão continuar, certo?", perguntou ela baixinho.
"Sim. E temos que estar preparados."
As Ruínas do Presente
A polícia anotou as informações. Os bombeiros terminaram de inspecionar a estrutura. Tudo indicava que o incêndio havia começado em dois lugares diferentes. Um ataque coordenado. Intencional. Premeditado.
A Fundação teria que fechar temporariamente. As crianças seriam realocadas. Os funcionários seriam suspensos até segunda ordem. E Amélia sentia que o incêndio não havia consumido apenas um prédio. Ele havia atingido sua fé, sua força, sua crença de que o pior já havia passado.
"Temos que proteger as crianças", disse ela de repente. "Gabriel. Tomás. Isabelita. Isso não fica dentro dos muros."
Luciano assentiu, com os lábios franzidos. E em seus olhos, havia algo que ela não via há muito tempo: medo real.
Quando voltaram para casa, o amanhecer começava a tingir o céu de um azul acinzentado. Amélia parou por um momento no jardim da frente. Ela se aproximou da amendoeira que ela e Gabriel cuidavam com tanto carinho e a tocou com a palma da mão aberta. Precisava se ancorar em algo que não queimasse, que não pudesse ser destruído.
Olhou para a casa e pensou nos filhos. Em seus segredos. Em tudo o que ainda não sabiam.
Naquela noite, enquanto os outros dormiam, Amélia sentou-se em seu escritório. Abriu uma velha caixa de madeira que guardava desde pequena. Dentro, entre papéis, encontrou uma carta fechada de Rafael. Uma que ela nunca ousara ler.
Segurou-a nas mãos com a mesma sensação que se tem antes de entrar em uma fogueira.
Agora não havia mais volta.