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A tarde caíra com uma calma densa, quase ofensiva. Era uma daquelas tardes quentes em que a cidade parece esperar por algo inevitável. Da janela do seu quarto, Gabriel observava a silhueta opaca do horizonte. Ao longe, uma coluna de fumaça preguiçosa e persistente ainda subia, como se o incêndio da Fundação se recusasse a se tornar apenas uma lembrança.
Ele cerrou os punhos nos bolsos do moletom e ficou ali, imóvel, como se olhar para a fumaça pudesse lhe dar respostas. Mas não havia nenhuma. Apenas perguntas. E um silêncio alto demais dentro de sua casa.
"Não é só um incêndio", sussurrou para si mesmo, com a voz quase sem som. "É uma mensagem."
Desde aquela manhã, Amélia se tornara uma pessoa diferente. Não no óbvio, mas nos pequenos gestos: seu olhar parecia esquadrinhar as sombras, seu jeito de fechar portas era mais rápido, mais definitivo. Dormia pouco. Falava menos. Seu sorriso maternal havia desaparecido, deixando-a com uma expressão alerta, como alguém com medo de que tudo se estilhaçasse ao menor ruído.
Luciano, por sua vez, falava em sussurros ao atender o telefone e evitava contato visual por muito tempo. E o que mais perturbava Gabriel era que Isabelita não respondia às suas mensagens. Nenhuma. Como se o incêndio também tivesse destruído a comunicação entre eles.
E Tomás... Tomás chorava à noite. Chorava dormindo, como se sua alma soubesse de coisas que sua consciência não conseguia explicar.
Gabriel desceu ao porão naquela mesma tarde, mais por instinto do que por escolha. Não procurava nada concreto. Talvez quisesse se reconectar com alguma parte de si que não estivesse contaminada pelo medo. Pensou em seus quadrinhos antigos, aqueles que Amélia lhe escondia quando tinha doze anos, porque "estavam cheios de violência gratuita". Talvez agora, essa violência não parecesse tão gratuita.
Começou a vasculhar caixas, movendo coisas desajeitadamente e às pressas. O porão cheirava a umidade e madeira velha, e cada rangido do chão acima dele parecia um aviso.
Foi então que ele viu.
Uma pequena caixa de madeira escura, sem marcas visíveis. O cadeado enferrujado parecia mais decorativo do que funcional. Não estava escondido, mas sua presença parecia deslocada, como se alguém o tivesse deixado ali de propósito... esperando que ele o encontrasse.
Gabriel se abaixou e examinou a fechadura. Sem pensar duas vezes, vasculhou suas ferramentas em busca de um alicate velho e o inseriu no cadeado. Mal aplicou força quando ouviu um "estalo" agudo. O som lhe deu satisfação instantânea, como se tivesse aberto não apenas uma caixa, mas uma porta secreta dentro da casa.
Dentro, havia um caderno coberto com um tecido cinza, desgastado nos cantos. Não trazia nome nem data, apenas uma etiqueta colada com fita adesiva velha. Em uma caligrafia infantil, quase ilegível, dizia:
"Não Abra".
Gabriel deu uma risada curta e amarga. "Tarde demais", pensou. Abriu o caderno.
As primeiras páginas estavam cheias de desenhos. Rabiscos. Pinturas a caneta preta, traços ansiosos, intensos, quase violentos.
Uma casa em chamas, desenhada repetidamente. De ângulos diferentes. As janelas pareciam olhos gritando. A porta, uma boca aberta engolindo fogo. A cada página, o fogo parecia mais intenso. Mais vívido. Mais intencional.
Então, figuras humanas apareceram: uma mulher sem rosto, uma criança com uma cicatriz na testa, um homem alto com um chapéu escuro e olhos escondidos. Ninguém tinha nome. Mas algo dentro de Gabriel os reconheceu.
Ele virou as páginas com um nó crescente no peito. No final de uma delas, quase escondida entre os desenhos, leu uma frase escrita com caligrafia trêmula:
"Papai não era quem você pensa."
Ele ficou parado. Sentiu um arrepio repentino percorrer sua espinha, como se o ar no porão tivesse caído vários graus de repente. E o pior é que isso não o surpreendeu. Ele sentia isso há anos. Desde pequeno, notava rachaduras nas histórias de sua mãe. Lacunas nas anedotas de Luciano. Silêncios compartilhados. Medos herdados sem nome.
Ele virou a página. Um novo desenho. Desta vez, uma boneca de pano pendurada numa corda. Acima, em vermelho vibrante: "CULPA".
Gabriel fechou o caderno com força. O porão de repente ficou mais escuro, ou talvez fosse só porque ele via as coisas de forma diferente agora.
Subiu as escadas lentamente, escondendo o caderno sob o suéter. Evitou Amélia. Não queria jantar. Fingiu estar com sono e se trancou no quarto. De lá, ouviu a casa como se fosse outra casa. A voz de Amélia na cozinha, suave e abafada, como uma música repetida para não pensar. O choro de Tomás, que não era um grito de dor física, mas de algo mais profundo. E o clique metálico da porta do escritório de Luciano, trancando-se. Sempre trancada.
Gabriel se enfiou debaixo das cobertas e ligou a lanterna do celular. Abriu o caderno novamente.
Leu devagar. Cada palavra parecia um testemunho. Cada desenho, uma confissão.
Na última página, havia algo escrito com marcador vermelho. Palavras que pareciam uma frase:
"Ele pensou que era por amor.
Mas o fogo não abraça, Gabriel.
O fogo destrói."
O caderno tremia em suas mãos. Ele fechou os olhos e cerrou os dentes.
Ele não dormiu. Não por medo.
Por raiva.
Naquela noite, Gabriel compreendeu que as histórias de sua família não eram contos de fadas ou anedotas herdadas: eram ruínas enterradas sob camadas de silêncio. E ele acabara de desenterrar uma parte dela. Pequena, talvez. Mas o suficiente para mudá-lo.
O fogo não era apenas um símbolo. Era um aviso vivo. E agora queimava dentro dele.