Não foi fácil fugir. Eu tinha apenas doze anos, o corpo magro, os lábios rachados pelo frio e as mãos cheias de cicatrizes. O orfanato era um inferno disfarçado de caridade. As freiras pareciam anjos aos olhos de quem doava dinheiro, mas atrás das portas fechadas, tudo era grito, castigo injusto, jejum como penitência e noites intermináveis de choro sob lençóis ásperos. Ninguém sabia o que acontecia lá dentro. E os que sabiam... preferiam desviar o olhar.
Eu não. Eu não nasci para me calar. Nunca me calei. Nunca me rendi.
Numa noite, depois que uma das internas foi arrastada pelos corredores por roubar um pedaço de pão, decidi que não podia esperar completar dezoito anos para ser livre. A liberdade se toma, não se espera. Então tomei minha decisão. Fugi quando a escuridão cobriu tudo, quando as luzes do corredor se apagaram, quando os passos da irmã Clara já não ecoavam sobre o cimento.
Eu não sabia para onde ir. Só corria. Corria e chorava. Meus pés sangravam, as pernas tremiam, mas eu não parei. Corri até não ver mais os portões. Até o céu parecer menos cinza. Vaguei. Roubava restos, entrava em trens sem destino, cruzava vilarejos, evitava policiais e dormia em praças públicas. Às vezes me batiam por me aproximar demais de uma barraca de comida. Outras vezes simplesmente me ignoravam. Eu era invisível, como uma sombra suja e inofensiva.
Até que uma noite, com o estômago vazio e as lágrimas endurecidas nas bochechas, vi um contêiner de lixo atrás de um pequeno restaurante num povoado cujo nome eu nem sabia. Aproximei-me, tremendo, e revirei os sacos com desespero. Não tinha dignidade, nem vergonha. Só fome.
-Não precisa revirar o lixo, menina -disse uma voz atrás de mim.
Virei assustada. Era uma mulher de rosto redondo, cabelo preso, com um avental manchado de farinha e olhos escuros que não julgavam. Apenas observavam com... compaixão? Curiosidade?
-Está com fome?
Engoli em seco. Minha garganta ardia. Assenti com a cabeça.
-Venha. Vou te dar um prato quente, mas você precisa lavar as mãos antes, tá bom?
Minhas pernas tremiam, mas eu a segui. Na cozinha do restaurante, ela me serviu um prato de arroz com lentilhas. Nunca mais provei um sabor como aquele.
-Como você se chama? -perguntou enquanto eu devorava a comida.
-Valeria.
-E o sobrenome?
Baixei o olhar. Não queria responder. Não tinha resposta.
-Tudo bem, não importa. Pode me chamar de Carmen. E se se comportar direitinho, pode vir todo dia me ajudar com a louça. Que tal?
Esse foi o começo de tudo.
Carmen me abriu as portas do seu mundo. Não era rico. Não tinha luxo. Mas era acolhedor. Seguro. Me deu roupas limpas, uma cama. Me ensinou a lavar pratos, a varrer, a cortar cebolas sem chorar. E, acima de tudo, me ensinou a confiar. Me adotou como uma mãe adota com a alma. Sem papel. Sem cartório. Só com amor.
-Você é minha filha. Não preciso assinar nada pra saber disso -ela sempre dizia, acariciando meu cabelo.
Aos catorze, eu já a chamava de "mãe" sem pensar. Gostava de como soava. Me fazia sentir parte de algo.
Durante anos, moramos juntas sobre o restaurante. Eu ajudava à tarde depois da escola. Ela cozinhava com uma paixão contagiante. Tínhamos discussões bobas sobre o tempero do molho ou a forma como eu limpava as mesas, mas tudo acabava em risadas.
-Um dia você vai ser alguém importante -ela dizia-. Mas nunca se esqueça de onde veio, Isa. Nunca.
-Não pretendo esquecer. Só quero poder dar à senhora o que merece.
-E o que é isso, filha?
-Uma vida sem dívidas, sem trabalhar até de madrugada, sem se preocupar se vai ter dinheiro pra pagar a luz ou não.
Ela ria, balançando a cabeça.
-Seu amor já me basta.
Mas não bastou para impedir a doença. Anos depois, quando eu estava prestes a terminar o último semestre da faculdade, começaram os esquecimentos. No início era leve. Perdia as chaves, confundia os ingredientes. Depois, as coisas pioraram. Às vezes me chamava de "Luz". Dizia que a mãe dela tinha vindo visitá-la... mas a mãe dela tinha morrido há mais de dez anos.
-Mãe, sou a Val. Não me reconhece?
-Claro que sim, Luz... Faz um cafezinho pra mim?
Quando completei dezoito, entrei na universidade com uma bolsa de estudos. Queria estudar administração, queria construir algo. Ser alguém. Mamãe já começava a adoecer nessa época. Esquecia as coisas. Confundia rostos.
A doença degenerativa foi levando ela aos poucos. Perdemos o restaurante porque não conseguíamos mais manter. Os clientes pararam de vir. Carmen já não cozinhava igual, queimava os pratos, esquecia os pedidos. E eu... eu não dava conta de tudo. O negócio faliu e tivemos que entregar o ponto por causa da hipoteca. Terminamos num quarto úmido, com apenas duas camas e um banheiro compartilhado. Eu estudava de manhã, trabalhava numa cafeteria à tarde e cuidava da mamãe à noite.
Até que ficou impossível tê-la em casa. Doeu tanto... mas eu já não podia deixá-la sozinha. Uma vez quase incendiou o quarto porque acendeu uma vela e esqueceu de apagar.
Internei-a numa casa de repouso. Chorei como nunca. Me culpei. Me odiei. Mas fiz por ela. Porque era o certo.
E foi por ela que procurei um novo emprego depois de me formar. Precisava pagar a universidade, o aluguel, a clínica. Tudo. Enviei mais de cem currículos. Mais de cem portas fechadas. Até que um dia, uma ligação mudou minha vida:
-Senhorita... Rios? -disse uma voz masculina, elegante, ao telefone-. Aqui no Grupo Castillejo estamos interessados no seu perfil para uma vaga. Se puder vir amanhã cedo, o senhor León deseja entrevistá-la pessoalmente.
Eu não fazia ideia de quem ele era. Mal tinha tempo de ver noticiário ou redes sociais. Apenas fui. Com minha pasta na mão, os sapatos limpos, o cabelo preso e o coração tremendo.
Lembro de cada segundo daquele dia. Lembro de como entrei no prédio e senti que todos me olhavam como se eu não pertencesse àquele lugar. Lembro de como uma recepcionista loira me escaneou com o olhar e murmurou algo para outra funcionária. Mas não me importei.
Eu estava ali para conseguir aquele emprego.
Quando me chamaram para a sala dele, eu não sabia que estava prestes a ver o homem que bagunçaria cada parte da minha vida. León. Dono de um império. Milionário. Dominador. Magnético. E perigosamente irresistível.
Ele estava de pé, olhando pela janela. O sol desenhava sombras douradas sobre seu cabelo negro. Quando se virou, a primeira coisa que notei foram os olhos: frios, calculistas, intensos. Sustentou meu olhar por alguns segundos. Sem piscar. Sem sorrir.
-Está com medo? -foi a primeira coisa que disse.
-Deveria estar? -respondi firme, embora por dentro minhas pernas estivessem fracas.
Seus lábios se curvaram levemente. Não era um sorriso gentil. Era um sorriso de reconhecimento. Como se tivesse encontrado algo... interessante.
-Sente-se. Não gosto de pessoas fracas. E você... parece ser uma sobrevivente.
Não soube dizer se era um elogio ou uma ameaça. Mas me sentei. E assim tudo começou.