/0/14893/coverbig.jpg?v=48f19583495716405ff6084aa3ca3b79)
Aquela noite foi mais longa do que qualquer outra. O silêncio entre Leonardo e Isadora ocupava todos os espaços do apartamento. Não havia discussão, nem acusações, apenas uma quietude incômoda, como se palavras não ditas ecoassem entre as paredes com mais força do que qualquer grito.
Isadora fingia estar concentrada nos rascunhos da próxima exposição, mas seus olhos traíam o esforço. A caneta parava a cada dois minutos, os pensamentos viajavam para longe - e sempre voltavam para Júlia.
Leonardo, por sua vez, estava cada vez mais inquieto. Tentava trabalhar, tentava descansar, mas seu celular vibrava em intervalos curtos. Mensagens rápidas de Júlia. Um "Boa noite, Léo" com uma carinha sorridente. Depois, uma foto de uma fita cassete antiga com a legenda: "Lembra disso?"
Ele sorriu sem perceber.
- O que foi? - perguntou Isadora, com naturalidade forçada.
- Nada, só uma lembrança antiga - respondeu ele, e colocou o celular de lado.
Isadora não disse nada. Apenas observou enquanto ele desviava o olhar.
Na manhã seguinte, Leonardo chegou à empresa antes do habitual. O céu ainda estava tingido com tons de azul profundo, e o saguão vazio fazia ecoar seus passos.
Horas depois, já imerso em reuniões, Leonardo foi interrompido por uma notificação discreta. Júlia havia deixado um café em sua mesa com um bilhete preso ao copo:
"Seu café favorito. Sem açúcar, do jeito que você sempre odiou admitir." - J.
Ele sorriu. Pegou o copo, cheirou o aroma forte e, por um instante, lembrou-se de quando ela o forçava a tomar café preto aos 14 anos, dizendo que homens de verdade não colocavam açúcar.
Mas logo depois, o sorriso sumiu.
Não era assim que devia ser.
Na galeria, Isadora tentava manter a concentração. A montagem da exposição precisava de sua atenção. Mas ela estava distraída - e não era apenas por ciúmes.
Havia algo estranho em Júlia.
Era como se ela tivesse voltado não apenas para rever um amigo, mas para recuperar algo que sentia que era seu por direito.
Em um impulso, Isadora digitou o nome completo de Júlia no computador. Procurou redes sociais, notícias, qualquer menção. Encontrou pouco: um LinkedIn desatualizado, uma breve citação em uma revista portuguesa sobre um projeto de apoio emocional em empresas, uma foto antiga em um blog sobre saúde mental.
Nada demais.
Mas mesmo assim, algo não se encaixava.
Na sexta-feira, Leonardo chegou em casa mais tarde que o habitual. Isadora o esperava à mesa, com vinho e duas taças já servidas.
- Surpresa? - disse ela, com um sorriso discreto.
- Bastante - respondeu ele, tirando o paletó.
Ela apontou para a cadeira.
- Senta. Vamos conversar.
Ele obedeceu, mas sentiu o ar pesar.
- Sobre o quê?
- Sobre você. Sobre a Júlia. Sobre nós três.
Leonardo franziu a testa.
- Não existe "nós três", Isadora.
- É mesmo? Porque parece que ela está entre nós há dias.
Ele respirou fundo, apoiou os cotovelos na mesa.
- Júlia é só uma amiga. Uma amiga antiga. Tivemos uma infância muito próxima, e ela reapareceu. Só isso.
- Você está tão envolvido com essa "amizade" que não percebeu como se afastou de mim nos últimos dias. Está sempre sorrindo para o celular, saindo mais cedo, voltando mais tarde. Ela sabe detalhes sobre você que nem eu sei. E você não vê problema?
- Você está exagerando.
- Não estou, Léo. Estou prestando atenção. E, sinceramente, não gosto do que estou vendo.
Leonardo hesitou.
- E se ela tivesse voltado por outro motivo? - arriscou Isadora.
- Como assim?
- E se ela quisesse mais do que amizade? E se o que ela quer é você?
O silêncio entre eles foi ainda mais forte do que antes. Ele não respondeu. Apenas tomou um gole do vinho e olhou para o líquido escuro como se procurasse algo ali.
No sábado, Leonardo saiu para "resolver pendências no escritório". Era mentira. Ele sabia disso. E Isadora também sabia.
Foi encontrar Júlia em um café discreto no centro da cidade. O lugar tinha paredes de tijolos à mostra e discos antigos pendurados como decoração.
- Pensei que você não viria - disse ela, com um sorrisinho nos lábios.
- Júlia... o que estamos fazendo?
Ela olhou para ele, séria.
- Estamos conversando. Estamos revivendo algo que ficou guardado por muito tempo.
- Mas por quê agora?
- Porque agora eu voltei. Porque agora você está casado e, talvez, pela primeira vez, esteja vulnerável o suficiente para se lembrar de mim.
Leonardo franziu o cenho.
- Isso é cruel.
- A vida foi cruel comigo também. Quando você desapareceu após a morte do seu pai, eu fiquei. Esperei. Te procurei. Mas você me apagou. Como se tudo o que vivemos não tivesse valor.
- Eu estava destruído, Júlia. Era jovem demais para assumir uma empresa, uma família, tudo.
- E eu estava sozinha. Mas agora... agora, quem sabe temos uma segunda chance?
Leonardo ficou em silêncio. Sabia que havia algo ali. Algo não resolvido. Mas também sabia que estava ultrapassando uma linha perigosa.
Enquanto isso, Isadora revisava documentos na sala do escritório que dividia com os curadores. Um envelope chamava atenção sobre sua mesa. Era um dossiê.
Ela o abriu com relutância. Era o resultado de uma busca que havia solicitado discretamente a um conhecido investigador particular. Ela nunca pensou que chegaria a esse ponto. Mas agora precisava saber.
As páginas mostravam uma linha do tempo. Júlia tinha ido embora para Lisboa... mas não havia registros dela em nenhuma universidade de Psicologia. Tampouco havia comprovações de trabalhos em empresas europeias. O único período rastreável foi entre 2018 e 2022, quando trabalhou como recepcionista em um centro terapêutico - e saiu após uma denúncia de comportamento inadequado com pacientes.
Nada da mulher carismática e bem-sucedida que Júlia dizia ser.
Isadora largou os papéis e respirou fundo. Precisava de calma. Mas uma certeza crescia dentro dela:
Júlia não era quem dizia ser.
Naquela noite, Leonardo voltou para casa mais tarde ainda. Isadora o esperava na sala, sem disfarçar a tensão.
- A gente precisa conversar de novo - disse ela, com os papéis em mãos.
- Agora? Eu estou exausto.
- Sim, agora. Porque isso não pode esperar.
Ela jogou os documentos sobre a mesa. Ele os pegou com desconfiança e começou a folhear.
- O que é isso?
- O que Júlia não te contou. A mulher que você reencontrou não é a mesma que você deixou anos atrás. Ela mentiu pra você, Léo.
Ele leu em silêncio, o rosto perdendo a cor aos poucos.
- Você mandou investigar ela?
- Eu não tive escolha.
- Isso é invasivo, Isadora.
- Invasivo é ela invadir o nosso casamento com mentiras. Eu te dei espaço. Confiei em você. Mas não posso mais ignorar o que está acontecendo.
Leonardo jogou os papéis sobre a mesa e passou as mãos no rosto.
- Eu não sei mais o que sentir.
- Então sente o que quiser - disse Isadora, com os olhos marejados. - Mas decide o que vai fazer. Porque eu não vou dividir você com uma sombra do passado.
Ela se levantou e foi para o quarto, deixando Leonardo sozinho com as verdades que fingia não ver.
No dia seguinte, ele foi até a casa de Júlia. Precisava de respostas. De confrontos.
Ela o recebeu com um sorriso e um café já pronto, como sempre.
- Que bom que veio - disse, alegre.
- Júlia, por que você mentiu?
O sorriso dela desapareceu.
- Como assim?
- Você disse que estudou em Lisboa, que trabalhou em grandes empresas. Mas nada disso é verdade. Você acha que eu não ia descobrir?
Ela permaneceu em silêncio por um momento. Depois, sentou-se devagar no sofá.
- Eu queria que você me visse como alguém bem-sucedida. Queria te impressionar. Só isso.
- Você não precisava disso. Mas agora... agora você me colocou contra a mulher que sempre esteve ao meu lado.
- Ela nunca te conheceu de verdade, Léo. Eu sim. Eu estava lá antes de tudo. E ainda estou.
- Mas talvez por um motivo errado.
Júlia se levantou, os olhos brilhando de emoção contida.
- Você acha que eu voltei só pra te atrapalhar? Eu voltei porque ainda te amo. Sempre te amei. Mesmo quando você sumiu. Mesmo quando nunca mais respondeu minhas cartas.
Leonardo sentiu o peito apertar. Não era uma situação simples. Não era apenas sobre escolha. Era sobre passado, culpa, amor não resolvido.
- Eu não posso te dar o que você quer - disse ele, por fim. - Não agora.
Ela segurou as lágrimas, mas sua voz tremia.
- Então vai. Volta pra sua esposa perfeita. Mas lembra de uma coisa: você nunca foi inteiro com ela.
Leonardo saiu sem olhar para trás.
Mas as palavras de Júlia ecoariam dentro dele por muito tempo.