Capítulo 3 Distância

O domingo amanheceu nublado, como se o céu soubesse que algo se partira no dia anterior.

Leonardo acordou antes do despertador. Os olhos ardiam, não por falta de sono, mas por excesso de pensamentos. Passou a noite revivendo palavras, olhares, lembranças. A cabeça girava em círculos, sem chegar a lugar algum.

Ao seu lado, Isadora ainda dormia. Seu rosto sereno contrastava com o nó no estômago dele. Ela não o procurara depois da conversa. Nenhum gesto de reconciliação, nem mesmo um silêncio que pedisse aproximação. Apenas distância. Uma distância tranquila demais para ser ignorada.

Ele se levantou devagar e foi para a varanda. O ar da manhã estava frio, e a cidade ainda sonolenta. Ficou ali por longos minutos, observando a vida dos outros pelas janelas dos prédios vizinhos, tentando esquecer a confusão que era a sua.

Isadora acordou pouco depois. Ao vê-lo na varanda, não disse nada. Foi direto para a cozinha, colocou a água para ferver, organizou os grãos de café na prensa francesa. Movimentos rotineiros, mas meticulosamente silenciosos.

Leonardo entrou na cozinha alguns minutos depois, pegou uma xícara e sentou-se à mesa. Isadora lhe serviu o café sem perguntar se ele queria.

- Obrigado - murmurou ele.

Ela assentiu, mas não respondeu.

- Dormiu bem?

Ela deu de ombros.

- Mais ou menos.

Ele quis dizer algo, qualquer coisa que quebrasse a muralha entre eles. Mas as palavras não saíam. Sentia que, se insistisse, ela poderia desabar. Ou se afastar de vez.

Preferiu respeitar o silêncio.

Naquela tarde, Isadora saiu sozinha para visitar a mãe. Não mencionou planos, nem horário para voltar. Apenas pegou a bolsa, avisou que precisava de ar e partiu.

Leonardo ficou em casa. Tentou se concentrar em documentos, revisões de contratos, mas nada parecia importar. Estava inquieto, como se uma parte de si estivesse suspensa no tempo.

Pela primeira vez em dias, não pensou em Júlia com entusiasmo. Pensou com pesar.

Ela havia cruzado uma linha, e ele também. Talvez não com ações, mas com sentimentos. Havia permitido que a nostalgia invadisse o presente, que memórias antigas manchassem o casamento que levou anos para construir.

E agora, ele pagava o preço.

Enquanto dirigia pela cidade, Isadora sentia a cabeça pesada. A visita à mãe servira apenas como desculpa. Precisava de tempo sozinha. Tempo para respirar, pensar e entender o que fazer com a avalanche que a vida se tornara.

Parou o carro em frente ao antigo ateliê onde iniciara sua carreira. Ainda havia o letreiro desgastado com seu nome, agora coberto por camadas de pó e descaso. Ficou ali por alguns minutos, lembrando-se de quem era antes de Leonardo, antes da galeria, antes de tudo.

Ali, ela se sentia viva. Com tinta nos dedos, música baixa no rádio e a alma leve. Sentia falta dessa versão de si mesma.

Talvez tivesse se perdido um pouco no caminho.

Talvez Júlia não fosse o verdadeiro problema.

Na segunda-feira, Leonardo chegou cedo à empresa. Seus passos ecoavam nos corredores quase vazios. As luzes do andar executivo ainda estavam apagadas.

Entrou na sala, deixou a pasta sobre a mesa e ficou alguns segundos olhando pela janela.

Foi então que ouviu passos leves se aproximando. Voltou-se. Era Júlia.

- Bom dia - disse ela, parando na porta, hesitante.

- Júlia... - murmurou ele.

Ela entrou devagar, como quem não sabia se era bem-vinda. Trazia um envelope nas mãos.

- Eu... vim me despedir.

Leonardo franziu o cenho.

- Despedir?

Ela assentiu.

- Pedi demissão. Já enviei o comunicado ao RH. Não quero causar mais problemas. Nem pra você, nem pra sua esposa.

Ele ficou em silêncio por um momento, absorvendo a notícia.

- Júlia, eu nunca quis que chegasse a esse ponto.

- Mas chegou. E a culpa não é só sua.

Ela estendeu o envelope para ele.

- Aqui estão algumas anotações sobre o projeto de bem-estar corporativo. Talvez você consiga continuar sem mim.

Leonardo pegou o envelope, mas não abriu.

- Você mentiu pra mim.

Ela assentiu.

- Menti. Porque achei que, se eu fosse verdadeira, você não me olharia da mesma forma. Mas acho que, no fundo, eu queria mesmo era te forçar a lembrar. Me lembrar.

- Eu nunca te esqueci.

- Mas escolheu seguir em frente - disse ela, com um meio sorriso triste. - E agora, precisa continuar.

Ela se virou para sair.

- Júlia...

Ela parou, sem se virar.

- Cuide bem dela, Léo. Ela parece te amar de verdade.

E então se foi.

Nos dias que se seguiram, a empresa continuou funcionando como sempre. Reuniões, prazos, metas. Mas Leonardo estava mais calado, mais introspectivo. Os funcionários notaram, mas ninguém ousou comentar.

Em casa, Isadora retomava sua rotina, mas com uma delicadeza quase ensaiada. Tudo era feito com cuidado, como se qualquer movimento brusco pudesse fazer tudo desmoronar de novo.

As conversas entre eles eram curtas. Cordiais. Educadas. Mas vazias.

Eles dividiam a mesma cama, a mesma mesa, os mesmos silêncios.

Na sexta-feira, durante o jantar, Isadora finalmente falou:

- Ela foi embora, não foi?

Leonardo ergueu os olhos, surpreso pela pergunta direta.

- Foi.

- Você pediu que ela saísse?

- Não. Ela tomou a decisão sozinha. Disse que não queria causar mais danos.

Isadora mexeu lentamente a comida no prato.

- E isso mudou alguma coisa em você?

Ele respirou fundo.

- Sim. Mudou.

- Você ainda sente algo por ela?

Leonardo hesitou, mas respondeu com sinceridade.

- Não da forma que você imagina. Ela foi importante pra mim, e acho que nunca deixei de carregar esse laço. Mas o que eu sinto por você é completamente diferente. Mais real, mais presente.

Isadora olhou nos olhos dele, buscando alguma rachadura naquela confissão.

- Então por que parece que você ainda está distante?

Leonardo baixou os olhos.

- Porque estou tentando entender onde eu errei. Com ela. Com você. Comigo mesmo.

- E o que você descobriu?

Ele a olhou de volta, com um olhar cansado.

- Que amar alguém não basta se você não cuida desse amor todos os dias.

Isadora engoliu seco.

- Eu queria acreditar que isso é o suficiente pra gente continuar.

Leonardo esticou a mão sobre a mesa, tocando a dela.

- Eu também.

Mas havia um vazio entre eles que ainda não sabia como preencher.

Na noite seguinte, Isadora voltou ao antigo ateliê. Sozinha. Levou uma tela em branco, pincéis, tintas e a garrafa de vinho que costumava abrir quando terminava um quadro.

Lentamente, começou a pintar.

Cores suaves. Formas abstratas. Nada muito definido. Apenas sentimentos.

Era a primeira vez, em anos, que se permitia criar sem ter que agradar colecionadores, críticos ou clientes.

E ali, naquela sala poeirenta, ela começou a lembrar quem era. E o que queria.

Quando voltou para casa, Leonardo ainda estava acordado. Sentado no sofá, lendo um relatório que nem registrava mais.

Ela se aproximou devagar.

- Pintei hoje - disse, com um leve sorriso.

Ele a olhou, surpreso.

- Fazia tempo que você não dizia isso.

- E fazia tempo que eu não sentia vontade.

Leonardo se levantou.

- E como se sentiu?

- Livre - respondeu ela, sem hesitar.

Ele sorriu, genuinamente.

- Que bom, Isa.

Ela o observou por um momento, depois falou com doçura:

- A gente ainda pode consertar as coisas. Mas vai precisar de tempo. E paciência.

Leonardo assentiu.

- Eu tenho os dois. Se você ainda quiser tentar.

Ela o abraçou, e pela primeira vez em muitos dias, o gesto foi sincero.

Ainda havia rachaduras. Ainda havia dor.

Mas também havia vontade.

E, talvez, isso fosse um começo.

            
            

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