Capítulo 4 O Silêncio Entre as Palavras

A segunda-feira chegou com um céu limpo e um calor suave que anunciava a transição das estações. O clima, ao menos, parecia estável. Já dentro do apartamento de Leonardo e Isadora, o equilíbrio ainda era frágil, construído com pequenos gestos e muita cautela.

O café da manhã foi mais tranquilo do que nos dias anteriores. Isadora preparou os ovos mexidos como ele gostava, e Leonardo serviu o suco de laranja sem que ela precisasse pedir. Os dois trocaram sorrisos breves, ainda tímidos, mas genuínos.

Era um começo.

- Vai ter uma reunião com os diretores hoje? - perguntou Isadora, partindo um pedaço de pão.

- Sim. Preciso revisar os novos contratos de fusão com o setor farmacêutico. Estão me pressionando pra fechar até o fim do trimestre.

Ela assentiu com um leve murmúrio e levou a xícara de café aos lábios.

- E você? Vai pintar de novo?

Isadora demorou um segundo para responder.

- Talvez. Ainda estou pensando no que quero expressar. Não quero pintar só por pintar. Quero sentir algo.

Leonardo sorriu.

- Acho isso lindo. Você sempre foi assim, Isa. Nunca fazia nada por obrigação.

- E você... sempre fez tudo por responsabilidade - ela disse com um olhar que misturava carinho e melancolia.

Ele entendeu o que ela queria dizer. Sempre colocara o dever acima do desejo. Sempre priorizara o que era certo para a empresa, para o nome da família, para os acionistas. Nunca para si.

Ou para ela.

- Estou tentando mudar isso - disse, com um suspiro contido.

- Eu sei. Estou tentando perceber essa mudança... aos poucos.

No escritório, Leonardo tentou focar nos números, mas tudo parecia cinza e repetitivo. As palavras dos diretores ecoavam na sala de reuniões como um zumbido distante. Ele estava ali, mas sua mente vagava por lugares mais íntimos: o toque de Isadora em sua mão, o olhar magoado que ela guardava atrás dos sorrisos, a ausência de Júlia, que agora se tornava presença apenas na memória.

No final da tarde, ele subiu para sua sala, fechou a porta e abriu a gaveta da escrivaninha. O envelope com as anotações de Júlia ainda estava lá, intacto. Ficou encarando-o por alguns segundos, como se estivesse prestes a tocar fogo em uma carta que continha uma vida inteira.

Por fim, abriu.

As anotações estavam organizadas, escritas à mão. Júlia sempre tivera uma letra redonda e elegante. No topo da primeira página, havia um pequeno bilhete:

"Você sempre se importou com as pessoas mais do que imaginava. Espero que esse projeto te ajude a lembrar disso. Com carinho, Júlia."

Leonardo suspirou. O projeto de bem-estar corporativo tinha potencial para mudar a forma como os funcionários da empresa se relacionavam com o trabalho. Era exatamente o tipo de iniciativa que ele queria abraçar agora - algo humano, concreto, real. Diferente das negociações frias e das fusões impessoais.

Talvez fosse hora de ouvir mais, comandar menos.

Enquanto isso, Isadora passava a tarde no ateliê. A tinta secava lentamente na tela. O quadro que pintava agora tinha cores intensas: tons de vinho, azul-marinho e dourado se entrelaçavam num movimento espiral, sem forma definida. Era caos e beleza ao mesmo tempo.

Pela primeira vez desde o reencontro de Leonardo com Júlia, ela conseguia respirar mais fundo. A dor ainda existia, mas era menos aguda, menos corrosiva. Talvez porque ela também estivesse mudando.

Voltar a pintar a lembrava de si mesma. De uma Isadora mais jovem, mais livre, mais espontânea - e que Leonardo amava, não por conveniência, mas por admiração.

Ela queria que ele se apaixonasse de novo. Por essa mulher. Não por quem ela fingira ser nos últimos anos, presa a jantares sociais e expectativas.

E, no fundo, queria se apaixonar por ele também - não pelo CEO, mas pelo homem. O mesmo menino que um dia a convidara para conhecer seu mundo com olhos encantados.

À noite, eles jantaram juntos no apartamento. Nada sofisticado - apenas sopa e torradas, preparados por Isadora. A conversa foi leve, pontuada por silêncios que, dessa vez, não incomodavam.

- Estive pensando - disse Leonardo, entre uma colherada e outra. - Talvez seja hora de retomar aquele projeto que mencionei tempos atrás. O programa de bem-estar para os funcionários.

- Aquele que envolve arte, esporte, acompanhamento psicológico?

- Esse mesmo. A Júlia deixou boas ideias. E acho que... é algo que posso fazer não só pela empresa, mas por mim.

Isadora ergueu uma sobrancelha.

- Vai levar adiante algo que ela começou?

- Ela apenas reacendeu uma vontade antiga. O projeto é maior do que qualquer um de nós. E quero construir isso com a minha equipe. Talvez você possa me ajudar com a parte artística.

Ela sorriu, surpresa.

- Você quer que eu participe?

- Quero. E não só porque você é minha esposa. Mas porque você entende o impacto que a arte pode ter na vida das pessoas. Inclusive na minha.

Isadora sentiu o coração aquecer. Fazia tempo que não ouvia algo assim vindo dele - um convite sincero, sem obrigações nem interesses.

- Eu topo - respondeu. - Mas com uma condição.

- Qual?

- Que isso seja nosso. Um recomeço. Não só para a empresa. Mas para nós dois.

Leonardo a encarou por um instante e, com um leve sorriso, assentiu.

- É tudo o que eu quero.

Na semana seguinte, começaram a trabalhar juntos no esboço do projeto. Isadora sugeriu oficinas criativas, espaços para meditação e exposições mensais feitas por funcionários da própria empresa. Leonardo trouxe a estrutura, o orçamento, a estratégia de implantação. Era uma combinação curiosa - o pragmatismo dele com a sensibilidade dela. Mas funcionava.

As reuniões com a equipe do RH foram produtivas. Pela primeira vez, os colaboradores sentiam que algo verdadeiramente humano estava surgindo na empresa.

- Você está diferente, chefe - comentou Camila, a coordenadora do setor de gente e gestão. - Mais... acessível.

Leonardo sorriu, quase sem jeito.

- Estou tentando ser alguém melhor. E ouvir mais.

Ela sorriu de volta.

- A gente nota. E agradece.

Durante um almoço no refeitório da empresa - algo que Leonardo raramente fazia - ele e Isadora se sentaram entre os funcionários, conversaram com recepcionistas, seguranças, analistas de TI. Era uma cena inusitada: o CEO de uma das maiores corporações do país comendo empadão ao lado de estagiários.

- Você acha que isso é estranho? - cochichou Leonardo para Isadora.

- Eu acho que é admirável - ela respondeu. - Você está voltando a ser aquele garoto que queria mudar o mundo, lembra?

Ele riu.

- E você está voltando a ser a menina que pintava quadros com nomes de sentimentos. Sabe... acho que a gente nunca deixou de ser esses dois. Só nos esquecemos por um tempo.

Ao final do dia, Isadora recebeu uma ligação inesperada. Era Júlia.

Ela olhou para a tela do celular por alguns segundos antes de atender.

- Júlia?

- Oi, Isa. Desculpa te ligar assim, do nada. Mas... achei que você merecia ouvir de mim.

- Ouvir o quê?

Do outro lado da linha, o silêncio foi denso por alguns instantes.

- Eu vou embora do país. Consegui uma vaga num programa de desenvolvimento social na Escócia. É algo que sempre sonhei.

Isadora ficou muda por alguns segundos.

- Fico feliz por você.

- Queria que soubesse que... nunca quis causar problemas entre você e o Leo. Mas acho que eu mesma não sabia o quanto ainda sentia por ele até vê-lo de novo.

- Eu percebi. Mas o que importa agora é que você está seguindo seu caminho. E nós, o nosso.

- Espero que vocês consigam ser felizes. De verdade.

- Também espero. Boa sorte, Júlia.

- Obrigada.

A ligação terminou, deixando em Isadora uma sensação estranha. Não era raiva. Não era alívio. Era algo mais próximo de compreensão.

Às vezes, era preciso deixar ir o passado - mesmo quando ele tinha nome, rosto e voz.

Mais tarde, naquela mesma noite, Leonardo e Isadora se sentaram na varanda com duas taças de vinho. O céu estava limpo, e as estrelas pareciam mais nítidas do que nunca.

- Júlia me ligou - disse ela.

Leonardo a olhou, atento.

- Vai embora do país.

Ele assentiu, pensativo.

- Talvez seja o melhor pra ela.

- E pra nós também.

Leonardo entrelaçou os dedos aos dela.

- Obrigado por não desistir de mim, Isa.

Ela encostou a cabeça no ombro dele.

- Eu só queria que você voltasse. Não pro homem perfeito que todos veem. Mas pro Leonardo que me fez rir nas noites frias, que me pediu em casamento com um bilhete feito à mão, que acreditava que amor dava trabalho - mas valia a pena.

Ele beijou sua testa com ternura.

- Esse Leonardo ainda está aqui. E se você me permitir... quero reaprender a ser esse homem.

Isadora sorriu, sentindo que, pela primeira vez em muito tempo, o amor entre eles não era um dever.

Era escolha.

Era reconexão.

E, mais do que tudo, era o começo de um novo capítulo.

            
            

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