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Era início de outono. O céu amanhecia mais tarde, e as folhas começavam a cair das árvores com delicadeza, como se o tempo se despisse pouco a pouco. O projeto de bem-estar na empresa de Leonardo ganhava forma. Havia painéis coloridos nos corredores, cartazes convidando para oficinas de arte, meditação e rodas de conversa.
Leonardo e Isadora caminhavam juntos por aquele novo cenário como coautores de algo que parecia vivo, pulsante.
- Nunca pensei que a empresa pudesse ter essa cara - comentou Isadora, observando um grupo de funcionários saindo sorrindo de uma aula de dança no horário de almoço.
- É como se eu estivesse conhecendo tudo de novo - disse Leonardo, com os olhos atentos aos detalhes.
Eles tinham voltado a conversar como um casal. Riam mais. Tocavam-se mais. Às vezes, o silêncio entre eles era apenas conforto, e não distância.
Mas, como tudo que cresce devagar, havia fendas escondidas.
Naquela semana, Leonardo recebeu uma mensagem inesperada. Era de Júlia.
"Podemos conversar? Só alguns minutos. Não é sobre nós - é sobre o projeto."
Ele leu a mensagem três vezes antes de decidir se responderia. Pensou em Isadora, pensou na promessa de recomeço que fizera a ela. Mas pensou também no projeto. Júlia o havia idealizado. Talvez tivesse algo relevante a dizer.
Respondeu com cautela:
"Podemos. Mas tem que ser rápido. Amanhã, às 16h, aqui na empresa."
Isadora pintava quando o celular vibrou com uma notificação no tablet compartilhado da agenda de Leonardo.
"Reunião às 16h com Júlia – Sala 12."
Ficou imóvel por um momento. Seu pincel parou no ar, entre o azul e o branco. Não perguntou nada a ele naquela noite. Não mencionou a notificação. Mas sentiu uma fisgada no peito, como quem revive uma dor que já achava superada.
Na sala de reuniões, no dia seguinte, Leonardo chegou cinco minutos antes do horário. Respirava fundo, mantendo o profissionalismo. Júlia entrou pontualmente. Usava um vestido discreto e o cabelo preso, como costumava usar nos tempos em que trabalhava ali.
- Obrigada por me receber - ela disse, sentando-se à frente dele.
- Claro. Vamos direto ao ponto.
- É sobre as oficinas culturais - começou Júlia. - Vi que vocês mantiveram a estrutura que eu deixei nos relatórios. Mas pensei em algumas melhorias para o segundo ciclo. Tem um modelo que usei em outro projeto, que mistura arte com escuta terapêutica.
Ela entregou uma pasta com gráficos e textos. Leonardo analisou por alguns segundos.
- Parece bem feito. Vou repassar ao RH.
Ela assentiu, mas não se levantou. Olhou para ele, em silêncio, como se medisse cada detalhe do seu rosto.
- Você está diferente - disse, por fim.
- Espero que sim.
- Diferente... mas ainda é você. O mesmo Leonardo que passava madrugadas falando sobre sonhos comigo no campus da faculdade. O mesmo que um dia me prometeu não se perder no meio dos números.
Ele fechou a pasta.
- Júlia, se for por esse caminho...
- Não é uma tentativa de reaproximação - ela cortou. - Só estou dizendo que... ainda te conheço. E não sei se a Isadora realmente entende esse lado seu.
Leonardo a encarou com firmeza.
- Ela entende mais do que você imagina. E está comigo desde antes de tudo isso aqui existir.
- Eu sei. Mas às vezes as pessoas se afastam sem perceber. E às vezes, quando se reencontram, percebem que se completam melhor com outros caminhos.
Ele se levantou, encerrando a conversa com educação, mas firmeza.
- Obrigado pela colaboração, Júlia. Espero que tenha sucesso na Escócia.
Ela abriu um sorriso tênue, quase triste.
- Quem disse que eu ainda vou?
Leonardo a observou por um segundo, mas não respondeu. Apenas abriu a porta da sala e a acompanhou até o elevador.
Naquela noite, ele não comentou nada com Isadora. Estava cansado, distraído. Disse que tinha sido um dia produtivo, mas longo. Isadora, por sua vez, também não mencionou o que tinha visto na agenda. No entanto, o silêncio deles - aquele que antes era conforto - agora parecia conter uma pergunta não dita.
Ela se recolheu mais cedo, dizendo estar com dor de cabeça. Leonardo ficou na sala, revendo os gráficos do projeto, mas sua mente insistia em revisitar a expressão de Júlia.
"Quem disse que eu ainda vou?"
Dois dias depois, Isadora decidiu ir à empresa sem avisar. Levaria alguns esboços para o novo mural da entrada e queria surpreender Leonardo. Chegou por volta das 15h e subiu direto.
Encontrou Leonardo em reunião com os diretores, então resolveu esperar. Sentou-se no pequeno lounge ao lado da recepção e abriu o caderno de esboços.
Foi quando viu Júlia.
A ex-coordenadora do projeto passou pelo corredor, com passos firmes e um leve sorriso nos lábios. Carregava uma pasta preta e olhou brevemente para Isadora.
- Isa - disse, com a voz doce. - Que coincidência.
- Você ainda está aqui? - perguntou Isadora, fechando o caderno.
- Sim. Leonardo me pediu para revisar algumas coisas do projeto. A gente tem conversado com frequência. É bom ver o quanto ele está mais leve ultimamente, não acha?
Isadora manteve a postura, apesar do nó na garganta.
- Ele tem trabalhado muito, sim. Mas o mérito não é só do projeto. É do esforço dele... e nosso.
- Claro. Imagino que sim - disse Júlia, sorrindo, mas com os olhos ligeiramente provocadores. - Bem, preciso ir. Só passei pra deixar alguns documentos. Foi bom te ver.
E desapareceu pelo corredor.
Isadora ficou ali, imóvel, o caderno fechado sobre o colo. Um peso invisível voltou a se instalar em seu peito. Não era ciúmes - era intuição. A certeza de que Júlia ainda não tinha desistido. E de que Leonardo talvez estivesse subestimando isso.
Quando ele saiu da reunião, a viu sentada no lounge.
- Isa? Você aqui?
- Vim trazer os esboços do mural da entrada. Achei que seria bom te mostrar ao vivo.
- Que surpresa boa. Quer subir comigo?
Ela hesitou por um instante.
- Júlia ainda está aqui?
Leonardo pareceu confuso.
- Não... quer dizer, passou aqui pra deixar umas ideias. Mas só isso.
- Só isso?
O tom dela era calmo, mas firme. Leonardo percebeu.
- Isa... eu não escondi nada. Ela pediu uma reunião. Disse que era sobre o projeto. Eu aceitei. E foi só isso.
- Você me prometeu um recomeço. Sem segredos.
- E eu estou tentando fazer isso direito.
Ela assentiu. Não discutiria ali, no meio da empresa.
- Tudo bem. Vamos ver os esboços.
Naquela noite, no carro, a tensão era quase palpável. O silêncio entre eles não era mais confortável. Era denso, cheio de camadas.
- Você sabia que ela talvez não vá mais embora? - perguntou Isadora, de repente.
Leonardo virou o rosto, surpreso.
- Não. Ela me disse que iria. Disse que era um projeto na Escócia.
- Ela disse "talvez". E eu não acho que isso seja coincidência.
Ele respirou fundo.
- Você acha que ela está tentando nos separar?
- Eu acho que ela ainda não desistiu. E que você está se recusando a ver isso.
Leonardo apoiou a cabeça no encosto do banco, fechando os olhos por um instante.
- Não quero que ela atrapalhe isso aqui, Isa. A gente. Mas eu não posso controlar as intenções dela. Só as minhas.
- Então me prova que as suas intenções estão comigo.
- Como?
- Se afaste dela. Corte esse laço. Se for mesmo só sobre o projeto, deixe outra pessoa assumir. Não quero viver esperando o próximo reencontro de vocês.
Ele a olhou, sério. Sabia que ela estava certa. E que talvez estivesse sendo ingênuo ao pensar que tudo poderia ser resolvido apenas com boas intenções.
- Está bem - respondeu, depois de um longo silêncio. - Amanhã eu falo com o RH. Ela não faz mais parte disso. Nem do projeto. Nem da nossa vida.
Mas, do outro lado da cidade, Júlia recebia um e-mail no celular.
"Confirmado: Vaga suspensa temporariamente. Nova convocação apenas para o próximo semestre. Agradecemos sua compreensão."
Ela sorriu, fechando o laptop com calma.
Ainda tinha tempo.
E ainda não tinha desistido.