Capítulo 7 NOVO CASO .1984

Sabe quando você cansa? encontra-se perdida, no meio de uma tempestade que você mesmo causou....

Hoje faz 2 anos que estou mudando essa tempestade.

1985-

Uma coisa que eu aprendi nesse último ano foi que a vida de militar não é como nos filmes. Não tem aquela trilha sonora de ação o tempo todo, nem aquele glamour que o pessoal de fora imagina. A verdade? É uma mistura de rotina cansativa, relatórios intermináveis e, às vezes, um silêncio tão grande que chega a doer.

Minha rotina começava cedo. Antes das seis da manhã, meu despertador tocava. Uma música qualquer de rádio, com chiado, como se o aparelho estivesse tão cansado quanto eu. Levantava, calçava as botas ainda com os olhos semiabertos, e seguia o protocolo: alongamento, café preto forte - sem açúcar, porque eu dizia pra mim mesma que era pra "ficar mais acordada", mas no fundo era só preguiça de adoçar.

Quando dava meio-dia, era sempre o mesmo dilema: onde almoçar?

A maioria dos colegas optava pelo refeitório da base, mas eu preferia voltar pra minha kitnet, que ficava a três quarteirões dali. O caminho era rápido, e eu gostava de sentir o vento batendo no rosto, me dando uma falsa sensação de liberdade.

Chegando em casa, o ritual era quase o mesmo todos os dias: colocava água pra ferver, jogava o macarrão no fogo e, enquanto cozinhava, fazia um suco de morango daqueles de pó. O cheiro de morango artificial tomava o pequeno ambiente enquanto eu mexia o molho simples de tomate, às vezes com uma pitada de orégano ou um restinho de queijo ralado que sobrava na geladeira.

Sentava na minha cadeira de madeira, que já rangia com o meu peso. O prato de macarrão sempre fumegante na frente, e o copo vermelho do suco ao lado. Às vezes comia em silêncio. Outras vezes ligava a TV pra ouvir os noticiários, mas acabava mais prestando atenção nas minhas próprias preocupações do que nas notícias.

Nas noites... bom, as noites eram piores.

Depois de um dia inteiro de patrulhas, audiências ou trabalho de escritório, eu chegava tão esgotada que só queria um banho morno e algo rápido pra jantar. A maioria das vezes acabava comendo um pão com manteiga e café com leite. Quando tinha mais disposição, fazia um arroz com ovo ou um miojo improvisado com tudo que eu encontrava na geladeira.

Mas naquela semana... tudo começou a mudar.

Foi numa quarta-feira, enquanto eu mexia meu molho de macarrão, que o telefone fixo da minha sala tocou. Atendi ainda com a colher de pau na mão.

- Soldado, preciso que venha até a central agora - era a voz do Tenente Duarte.

- Agora? - Olhei para a panela, o molho quase queimando.

- Agora. Temos um corpo.

Soltei a colher na pia, desliguei o fogão e fui. O cheiro de tomate ficou pela cozinha, misturado com o pânico que começou a crescer no meu peito.

Chegando na cena do crime, o déjà-vu foi imediato.

Uma mulher. Amarrada. Morta de forma estranha. As mesmas marcas... o mesmo padrão. Mas o que mais me arrepiou foi o detalhe que só eu parecia perceber: uma margarida seca ao lado do corpo.

Naquela noite, quando voltei pra casa, olhei pro meu prato de macarrão ainda em cima da mesa, já frio. Não consegui comer. Sentei no chão da sala, abracei os joelhos e encarei o vazio.

As lembranças de 1984 voltaram com força. O cheiro de terra molhada, os gritos abafados de vítimas que nunca tive a chance de salvar, o olhar do homem que prendemos... e a pergunta que me perseguia desde então: Será que prendemos o homem certo?

As noites seguintes foram piores ainda. Mesmo exausta, demorava horas pra dormir. Rolava na cama, encarando o teto. O ventilador fazia um barulho irritante, mas eu não tinha coragem de desligar. O silêncio me deixava paranoica.

Meu jantar? Passou a ser só um copo de leite... ou nem isso.

Na base, eu comecei a evitar os colegas. Meus superiores perceberam minha inquietação, mas ninguém tinha coragem de tocar no assunto. Alguns até comentavam que eu estava "ficando obcecada". Talvez estivessem certos.

Na sexta-feira daquela semana, fui chamada para revisar os relatórios do novo caso. Passei a tarde inteira na sala de arquivo, com uma pilha de pastas na minha frente e uma caneta na mão tremendo. A cada linha que eu lia, o padrão ficava mais claro.

Mesmo tipo de amarração.

Mesmo tipo de estrangulamento.

Mesmo tipo de flor.

Mesmo tipo de medo estampado nos rostos das vítimas.

Naquela noite, cheguei em casa destruída. Fiz um macarrão de novo - como se isso fosse me devolver o mínimo de normalidade. O suco de morango estava lá, ao lado, com gosto de infância... mas o gosto não descia.

Peguei o telefone fixo, liguei pra minha antiga chefe do mercado, a Dona Cida. Só queria ouvir uma voz conhecida.

- Você tá bem, menina? - ela perguntou.

- Não sei... - respondi, olhando pela janela.

Lá fora, a rua estava vazia... mas eu tinha certeza de que alguém estava me observando.

Antes de desligar, ouvi uma buzina ao longe, e uma memória me atingiu feito uma facada: o som do carrinho de ferro batendo nas calçadas da Rua Alvorada... o som que marcou o começo de tudo.

Agora, em 1985, com uma nova farda, uma nova vida... eu estava de volta ao mesmo ponto de partida.

E dessa vez... a tempestade estava mais forte.

-

                         

COPYRIGHT(©) 2022