Capítulo 2 Entregue como Moeda

Luana

Acordei com a sensação de que não era mais dona de mim.

O quarto era frio, feito de paredes brancas demais, limpas demais. Nenhum quadro, nenhum espelho. Apenas um colchão velho no chão, uma coberta áspera e um travesseiro fino, que cheirava a desinfetante. Nenhuma janela. Nenhum som de fora.

Eu estava viva. Mas tudo em mim gritava que havia morrido - ou pelo menos a parte que acreditava que minha vida ainda me pertencia.

Levantei devagar. A cabeça pesava. Talvez do medo, talvez da falta de comida - ou talvez da raiva que crescia feito tempestade no meu peito.

Tentei abrir a porta. Trancada.

Bati com força.

- Ei! Abre essa porta! - gritei.

Silêncio.

Bati de novo. A respiração já curta, o peito queimando.

- Eu não sou coisa de ninguém, ouviu?! Eu não sou mercadoria!

Mas ninguém respondeu.

Sentei de volta no colchão. Os olhos ardiam, mas eu me recusei a chorar. Não por ele. Não ali.

Era isso o que ele queria. Que eu quebrasse. Que eu implorasse.

Miguel Torres, o dono do morro, o homem que mandava e desmandava, que tratava a vida como moeda, que comprava e vendia silêncios, agora também era dono de mim. Pelo menos, era o que ele achava.

Mas eu não ia me entregar fácil.

Eu ia resistir. Nem que fosse só por dentro.

Horas depois, a porta se abriu com um estalo seco. A luz do corredor entrou como faca nos meus olhos, e junto com ela, um homem alto, de roupas pretas, entrou sem dizer nada. Apenas apontou para fora.

Levantei. Os músculos reclamaram. A boca estava seca. Mas eu fui.

O corredor era amplo e silencioso. Câmeras em cada canto. Cada passo que eu dava parecia ecoar nas paredes. O capanga me levou até uma sala. Um espaço que parecia uma mistura de escritório com sala de interrogatório. Ali, ele estava. Miguel.

Sentado em uma cadeira de couro, pernas abertas, cotovelos nos joelhos. Como um rei examinando seu brinquedo novo.

- Senta.

O tom era calmo. Mas não havia espaço para recusa.

Sentei.

Ele me observou por um longo tempo. O silêncio entre nós parecia vivo.

- Dormiu bem? - ele perguntou.

Fiquei em silêncio.

- Já começou a desobedecer de novo?

- Eu não vim aqui por vontade própria - respondi, com a voz firme.

Ele riu. Um som baixo, cínico.

- Ninguém vem. Mas todos aprendem a ficar.

Aquela frase me deu calafrios. Ele se levantou e caminhou lentamente até mim. Os passos precisos, a presença sufocante.

Parou atrás de mim. Eu sentia o calor do corpo dele se aproximando, o som da respiração dele perto do meu pescoço.

- Você sabe por que está aqui? - sussurrou.

Assenti, com os olhos fixos no chão.

- Fale.

- Minha mãe... devia dinheiro. Você me pegou como pagamento.

- Como moeda. - Ele confirmou. - E sabe o que se faz com uma moeda?

Não respondi.

- Se usa. Do jeito que quiser. Até ela não valer mais nada.

Minha mandíbula travou.

Ele passou um dedo pela minha nuca, devagar. Meu corpo inteiro enrijeceu. O toque era leve, mas carregado de poder. Ele estava testando limites. E eu sabia que qualquer reação errada podia ser usada contra mim.

- Mas antes de usar... a gente ensina a funcionar. E você vai funcionar do meu jeito, entendeu?

- Eu não sou máquina - rebati, a voz tremendo de raiva.

Ele deu a volta e parou diante de mim, inclinando o rosto para o meu.

- Não. Você é propriedade. E eu cuido do que é meu.

As palavras arderam.

Propriedade.

Nunca imaginei ouvir isso dirigido a mim. E o pior: dito com tanta calma, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

- Você vai me obedecer - ele continuou - até isso parecer normal. Vai aprender a olhar nos meus olhos só quando eu permitir. Vai comer quando eu mandar. Vai falar quando eu deixar. E quando eu quiser silêncio... você vai se calar.

Fechei os punhos.

- E se eu não quiser?

Ele sorriu. Mas os olhos estavam frios.

- Você quer viver?

Meu coração parou por um segundo.

Era isso. Sem me bater. Sem gritar. Sem levantar a voz. Ele fazia isso: te dominava com palavras, com olhar, com a certeza de que, se ele quisesse, você sumia sem deixar rastro.

- Começamos hoje - disse ele, voltando à cadeira. - Primeira lição: confiança.

- Confiança? - cuspi. - Em você?

- Não. Em mim, você vai obedecer. A confiança é em você mesma... em não fazer merda. Vamos ver se consegue cumprir uma ordem simples.

Ele apontou para a bandeja sobre a mesa. Havia pão, queijo, suco.

- Coma.

Eu franzi a testa. Era isso?

- Não está envenenado, princesa. Mas se quiser morrer de fome, o problema é seu. Isso aqui funciona com regras. E regra número um: você come quando eu digo. E agora eu disse. Então... coma.

Fui até a bandeja. A mão trêmula. Cada mordida tinha gosto de derrota.

Ele me assistia. Não como um homem assistindo uma mulher comer. Mas como um dono observando se o cachorro aprendeu o truque.

Quando terminei, ele se levantou.

- Vai voltar pro quarto. Mais tarde, quero você pronta. Roupa em cima da cama. Você vai vesti-la. Sem questionar.

- Pra onde eu vou?

- Aonde eu mandar.

- Vai me vender?

Ele se virou, riu pelo nariz e respondeu sem olhar:

- Não. Te vender seria fácil demais. E você... eu vou manter por perto. Tem coisas que só se aprende com convivência. Você vai descobrir.

Voltei ao quarto.

A roupa estava lá. Um vestido preto, justo, curto. Mais maquiagem, salto, e até uma gargantilha fina com uma argola de metal no centro.

Engoli em seco.

Era humilhação com etiqueta.

Sentei no colchão com o vestido nas mãos. Ele estava me moldando. A cada ordem, a cada silêncio imposto, a cada toque que não era violência... mas dominação.

Ele não precisava me bater pra me dobrar.

Ele fazia isso com o olhar. Com a ausência de escolha. Com a certeza de que aqui, no morro, ele era Deus.

E eu era só mais uma alma entregue como moeda de troca.

Mas no fundo do meu peito, uma parte ainda gritava. Ainda resistia.

E essa parte... eu ia proteger com todas as forças.

Mesmo que ele tentasse quebrar cada pedaço de mim.

            
            

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