Capítulo 3 As Regras da Casa

Luana

Coloquei o vestido como quem veste a própria sentença.

O tecido colava na minha pele como se tentasse marcar cada curva, cada suspiro. Era curto demais, justo demais. E aquela gargantilha... a argola de metal no centro pesava no pescoço como uma lembrança constante de que eu não era mais livre.

Olhei para o espelho que agora tinham colocado no quarto - talvez para que eu visse a nova versão de mim mesma. A que pertencia a ele.

E pela primeira vez, meus olhos não pareceram meus.

Eles estavam opacos. Cheios de fúria engolida.

A porta se abriu sem bater.

Um capanga, o mesmo de antes, me olhou de cima a baixo. Seu olhar era neutro, mas carregado da mesma frieza que eu já estava começando a reconhecer em todos ali. Gente que vivia no silêncio, que servia Miguel como se ele fosse o único ar possível naquele lugar.

- Ele mandou chamar - disse.

Assenti e fui. O salto alto afundava nos tapetes do corredor a cada passo, e tudo em mim gritava desconforto. Eu nunca andei de salto. Nunca precisei. Aquilo era parte do espetáculo - do teatro de controle que Miguel montava ao meu redor.

Me conduziram até uma sala de jantar luxuosa. Madeira nobre, lustres pendurados, copos de cristal. Parecia um cenário de novela, mas tudo ali tinha cheiro de poder e dominação.

Miguel já estava sentado à cabeceira da mesa. Usava camisa preta de novo, dessa vez com os primeiros botões abertos. Braços musculosos à mostra, pulseira de couro no pulso esquerdo. A postura era relaxada, mas os olhos... os olhos estavam fixos em mim.

Me observando como se eu fosse a atração principal da noite.

- Senta - disse, apontando para a cadeira à sua direita.

Eu me sentei.

Havia dois pratos servidos. Comida fina, cheirosa, elaborada. Mas não toquei. Estava ocupada demais tentando entender o jogo.

Ele se serviu calmamente. Cortava a carne como se não estivesse sentado ao lado da mulher que ele havia arrancado da vida à força.

- Está bonita - disse, sem tirar os olhos do prato.

- Bonita pra quê?

- Pra mim.

Engoli a raiva. Mantive os olhos no copo de água.

- Achei que você fosse me humilhar com um quarto escuro. Não com salto e maquiagem.

Ele riu, curto.

- Você vai entender, com o tempo, que há muitos tipos de controle. O que eu aplico é o que molda. O que transforma. O quarto escuro quebra. Mas o espelho... o espelho faz você se enxergar como eu quero que se veja.

- Como objeto?

Ele ergueu os olhos, pousando o garfo.

- Como minha.

Me calei.

A comida esfriava no prato, mas eu não tinha fome. O silêncio entre nós era carregado de coisas não ditas, de limites sendo testados.

- Come - ele disse.

Peguei o talher com mãos trêmulas. Obedecer era horrível. Mas desobedecer... era pior.

Comi devagar. A garganta apertada, o gosto de raiva misturado ao tempero.

- Você vai ter regras aqui. E vai segui-las - ele disse, enquanto comia com elegância assustadora.

- Como um cachorro?

Ele deu um meio sorriso.

- Cães são leais. E bem treinados, protegem seu dono com a vida. Mas você ainda está no estágio de mordida. Vai aprender.

Meu rosto queimou. Mas eu não respondi.

- Regra número um - continuou, enquanto enxugava a boca com o guardanapo -: você fala quando eu permitir. Regra dois: você nunca sai do quarto sem ser chamada. Três: você não toca em mim sem minha ordem. E quatro... - ele se inclinou para mais perto - você pertence a mim. Aceitando ou não.

Ele segurou meu queixo com firmeza, obrigando-me a olhá-lo nos olhos.

- Se quebrar qualquer uma dessas, a punição não será com palavras.

Soltou devagar.

- Entendido?

Assenti, com os dentes trincados.

Ele voltou a comer como se nada tivesse acontecido.

- Vai ficar aqui quanto tempo? - arrisquei.

- O tempo que eu quiser.

- E depois? Vai me largar? Vai me vender?

Ele parou o garfo no ar. Me olhou como se estivesse calculando mil possibilidades.

- Isso vai depender de você. E de como você vai aprender a se encaixar no meu mundo.

- Eu não sou desse mundo - rebati.

- Agora é.

Depois do jantar, fui conduzida a um cômodo diferente.

Era escuro, com paredes acolchoadas e uma cadeira de madeira no centro. Um ambiente que não era um quarto. Nem uma sala. Era... estranho. Intimidador.

Miguel apareceu alguns minutos depois. Vinha sozinho. Sem capangas.

- Esse é o lugar onde a maioria aprende - disse, trancando a porta.

- Aprende o quê?

- A obedecer com prazer.

Meu coração disparou.

Ele se aproximou. Os passos lentos. A mão alcançou meu braço, e mesmo que fosse apenas um toque leve, o arrepio foi imediato.

- Você está aqui porque foi entregue. Mas pode escolher como será sua experiência. Pode tornar isso um inferno... ou uma transformação.

- Isso é loucura.

- Não, Luana. Isso é controle. E controle é tudo o que tenho.

Ele me girou de leve, até que eu ficasse de costas pra ele. As mãos passaram pelos meus ombros, descendo até minha cintura. Mas não foi carícia. Foi posse.

- Hoje, só vou mostrar.

Ele pegou uma fita de tecido preto e amarrou delicadamente nos meus pulsos, atrás das costas. Nem forcei. Não por submissão, mas por medo de piorar.

- Isso não é violência - ele sussurrou no meu ouvido. - Isso é entrega. Você só não percebeu ainda.

Fiquei imóvel. A respiração acelerada.

Ele não fez nada além disso.

Me virou de frente, tirou a fita com calma e me olhou nos olhos.

- Quando você entender o que é prazer na obediência... vai me agradecer.

Saiu da sala sem dizer mais nada.

E me deixou ali, tremendo. Não de frio. Mas de algo que eu não sabia nomear.

***

Horas depois, sozinha no quarto, encarei o teto escuro e tentei organizar meus pensamentos.

Ele não me tocou.

Não me machucou.

Mas me feriu com algo muito mais profundo: o controle que entrava sorrindo, que se instalava devagar, que confundia o que era certo e errado dentro de mim.

Eu ainda odiava Miguel.

Mas pela primeira vez, eu temi não o que ele faria comigo... e sim o que ele já estava fazendo dentro de mim.

            
            

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