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Luana
O sol nem havia nascido, mas eu já estava acordada. A escuridão lá fora ainda era espessa, pintando o céu em tons de azul-marinho e roxo profundo, prometendo um novo dia que eu não tinha certeza de querer ver.
Talvez porque dormir ali fosse impossível. Cada rangido da velha estrutura de madeira parecia um sussurro ameaçador, e o silêncio pesado da madrugada era interrompido apenas pelo som distante do vento, que gemia pelas frestas das janelas empoeiradas. Minha mente, no entanto, não parava. Ela girava em torno dos acontecimentos da noite anterior, das palavras proferidas e dos olhares furtivos que me perseguiam.
Talvez porque, mesmo de olhos fechados, eu sentia que estava sendo vigiada. Uma sensação pegajosa e opressora, como se um par de olhos invisíveis estivesse fixo em mim, acompanhando cada movimento, cada respiração. Era um frio na espinha, uma certeza visceral que ia além da razão.
Não era só paranoia. Era real. Eu podia sentir a presença, quase como um peso no ar, embora não houvesse ninguém visível. Cada fibra do meu ser gritava que eu não estava sozinha, que a escuridão abrigava mais do que apenas sombras. E essa certeza era mais aterrorizante do que qualquer pesadelo que eu pudesse ter.
A câmera no canto do teto me lembrava disso. Um ponto preto, discreto, mas presente. Me observando mesmo quando eu virava de costas. Quando eu tentava fingir que o mundo lá fora ainda existia. Quando eu chorava em silêncio para não dar a ele o gosto da minha fragilidade.
Miguel não precisava estar ali. O olhar dele já tinha sido instalado em cada centímetro daquela mansão. Em cada parede. Em cada decisão.
Eu não sabia qual seria o castigo de quebrar as regras dele. Mas também não sabia qual seria o preço de seguir todas.
E, naquela manhã, entendi que a obediência era uma prisão de portas abertas: você anda, respira, se move... mas só dentro do que ele permite.
A porta se abriu às oito em ponto.
Duas mulheres entraram. Jovens, bem arrumadas, expressão neutra. Pareciam treinadas. Não falavam, apenas agiam.
Uma abriu o armário, tirando uma peça de roupa: uma saia preta justa, uma camisa branca de botão e uma lingerie fina, quase transparente. A outra trazia uma bandeja de café da manhã: suco natural, frutas picadas e dois ovos mexidos com cheiro bom demais para o que eu achava que merecia.
- O que é isso? - perguntei, mesmo sabendo que elas não iam responder.
Silêncio.
Apenas deixaram tudo disposto e saíram, fechando a porta atrás de si.
Era isso. Eu estava sendo treinada. Alimentada e vestida como um animal de estimação caro. Uma boneca para ser usada do jeito que ele quisesse.
Vesti a roupa com raiva. Cada botão fechado era uma dose de veneno descendo pela garganta. E a lingerie... foi pior. Miguel queria que eu sentisse o desconforto da exposição. Mesmo coberta, eu sabia o que estava por baixo. E ele também.
Comi por obrigação. O corpo precisava. A mente, não. A mente queria vomitar tudo.
Pouco depois, o capanga de sempre veio me buscar. Dessa vez, me levou até uma varanda ampla no segundo andar. Lá, havia um sofá branco, plantas bem cuidadas, uma mesa baixa com um caderno e caneta, e uma xícara de chá quente já servida.
Mas o que me arrepiou foi a TV.
Na tela, o meu quarto. A gravação da última madrugada. Eu dormindo. Eu me mexendo. Eu me escondendo sob a coberta.
E ele sentado ali, assistindo.
Miguel.
Com a mesma calma de sempre. Com a mesma roupa preta, a mesma postura dominante. O olhar fixo na imagem congelada de mim.
- Sente - disse sem me olhar.
Sentei, com o estômago revirando.
Ele pegou o controle, pausou a gravação e virou o rosto lentamente para mim.
- Você se encolhe quando está sozinha.
Fiquei em silêncio.
- Mas finge bravura quando eu entro.
Desviei o olhar.
- Isso é bom - ele disse, com a voz baixa. - Quer dizer que ainda tem orgulho. E eu gosto de destruir isso aos poucos.
Fechei os punhos. A raiva fervendo sob a pele.
- Por que está fazendo isso comigo?
- Porque eu posso.
Simples assim.
Ele se inclinou, pegando o caderno na mesa e jogando no meu colo.
- Escreva o que sente.
- Pra quê? Você já sabe o que sente por mim. Nojo. Raiva. Desprezo. É isso que você quer ver escrito?
- Eu quero ver você sangrar no papel. As palavras revelam o que a boca segura.
- Isso é tortura psicológica - rebati, com a voz embargada.
- Não, Luana. Isso é treinamento. Você ainda não entendeu onde está.
Levantei o olhar.
- No inferno?
Ele riu, pela primeira vez com prazer.
- Pode chamar assim, se quiser. Mas esse inferno tem regras. E você vai segui-las. Vai escrever todos os dias. Vai se ver por dentro. Vai se despir com palavras. E um dia... vai entender que submissão não é fraqueza. É poder canalizado.
- Você é doente.
- Talvez. Mas sou o dono desse lugar. E o seu.
As palavras doíam mais do que tapas. Porque ele dizia com tanta convicção que quase fazia sentido.
Ele levantou e caminhou até mim. Os passos lentos, ameaçadores.
Parou atrás do sofá, inclinou-se e sussurrou no meu ouvido:
- Hoje você está bonita. Mas amanhã... eu quero ver sua alma nua.
Saiu sem esperar resposta.
***
Fiquei ali por horas, encarando o caderno.
As palavras não vinham. Porque o que eu sentia era um nó. Um amontoado de medo, raiva, humilhação, e um pingo de... curiosidade.
Sim. E era isso que me deixava enojada comigo mesma.
Curiosidade.
Miguel não me tocava. Não me violentava. Não me batia.
Ele me dominava com tempo, silêncio e presença. E isso era pior.
Eu era resistente à violência. Mas não sabia como me defender de alguém que me moldava devagar.
Peguei a caneta com raiva e escrevi:
"Eu odeio você.
Odeio sua casa, sua voz, sua calma.
Odeio como você me olha como se já tivesse vencido.
Odeio mais ainda saber que, talvez, parte de mim sinta medo de te enfrentar...
e outra parte sinta medo de parar de te ver."
Fechei o caderno.
O peito pesava.
Quando anoiteceu, fui levada até a sala principal. Estava vazia, exceto por ele, sentado em uma poltrona, com um livro nas mãos.
- Senta ao chão - ordenou, sem levantar os olhos.
Sentei.
Ficamos assim por minutos. Sem falar. Sem som. Apenas a respiração dele e o virar das páginas. E mesmo ali, em silêncio, ele me dominava.
Até o olhar dele doía.
Miguel era o tipo de homem que te feria sem encostar. Que te despia sem tirar sua roupa. E que fazia você duvidar da própria mente.
Eu achava que estava resistindo.
Mas no fundo, ele já estava vencendo.
E o pior... eu sentia isso.
Dentro de mim.
Como uma ferida que latejava a cada vez que ele me olhava.