Entrou numa agência funerária.
"Queria saber o preço de uma cremação e de espalhar as cinzas em Sagres."
O funcionário olhou-o com estranheza.
"É para já?"
"Tenho pressa," disse Mateus, a voz rouca. "Pouco tempo."
O preço fê-lo engolir em seco. Era muito mais do que tinha.
Lembrou-se da promessa. Ele e Sofia, jovens, sentados na falésia, o vento a assobiar.
"Quando morrermos, quero que as nossas cinzas se misturem aqui, Mateus. Que o vento nos leve juntos para o mar."
Ele sorrira. "Ainda temos uma vida inteira pela frente, meu amor."
Agora, essa vida estava a esgotar-se, e ela odiava-o.
O seu passado, a condenação, tornava difícil encontrar trabalho. Ninguém queria um ex-presidiário.
Finalmente, através de um antigo contacto da prisão, conseguiu um emprego como empregado de mesa num restaurante de luxo na Foz. O salário era baixo, mas era um começo. Engoliu o orgulho. Precisava daquele dinheiro.
Na primeira noite, o restaurante estava cheio. Movia-se entre as mesas, servindo pratos caros e vinhos finos, sentindo os olhares curiosos dos clientes.
Então, viu-a.
Sofia.
Mais bela do que nunca, elegante num vestido caro. Ao seu lado, Leonardo, o seu antigo melhor amigo. Estavam de mãos dadas, sorrindo um para o outro. Falavam animadamente sobre os preparativos do casamento.
O mundo de Mateus parou. O prato que segurava tremeu nas suas mãos.
Sofia olhou na sua direção. Os seus olhos encontraram os dele. O sorriso dela morreu. O choque deu lugar ao nojo, depois a um ódio frio.
Leonardo seguiu o olhar dela e também viu Mateus. Um sorriso trocista curvou-lhe os lábios.
Mateus sentiu o sangue gelar.
Um turbilhão de memórias invadiu-o. Sofia e ele, crianças, a brincar nas ruas do Porto. A adolescência, os primeiros beijos roubados. A faculdade, os sonhos partilhados. O anel de noivado que ele lhe dera, uma promessa de futuro. Eram inseparáveis, a alma gémea um do outro.
Depois, a tragédia. A mãe de Sofia, uma mulher elegante mas triste, lutava contra uma depressão profunda. Envolveu-se num escândalo com um funcionário da empresa do marido, um industrial conservador e implacável do Norte. O medo do escândalo, da vergonha pública, levou-a ao desespero.
Ela escolheu morrer de uma forma que parecesse um acidente, mas que, subtilmente, incriminaria Mateus. Talvez por ciúmes do amor que ele e Sofia partilhavam, talvez num último ato de desespero para proteger a reputação da família, culpando um estranho.
Mateus encontrou-a. Percebeu imediatamente a armadilha. Se a verdade viesse ao de cima, a honra de Sofia e da sua família seria destruída. O pai dela, um homem obcecado pelo status, não suportaria.
Então, Mateus tomou a decisão que lhe custou tudo. Assumiu parte da culpa, fabricou uma confissão que o ligava vagamente ao incidente, o suficiente para ser condenado, mas que desviava as atenções do suicídio e do escândalo. Fez-o por Sofia. Para a proteger.
Agora, com a morte à espreita, essa decisão parecia ainda mais definitiva. O segredo morreria com ele.
Tiago, o assistente pessoal de Sofia, aproximou-se da mesa deles. Ao ver Mateus, o seu rosto contorceu-se numa careta de desprezo.
"Ora, ora, vejam quem temos aqui. Mateus. Não sabia que agora servias às mesas."
A voz de Tiago era alta, atraindo a atenção dos outros clientes.
"Pensei que estivesses preso por teres arruinado a vida da Dona Sofia e causado a morte da mãe dela."
Tiago empurrou Mateus com força. Mateus desequilibrou-se, deixando cair a travessa com estrondo. Comida e cacos de loiça espalharam-se pelo chão.
Alguns clientes riram. Outros olhavam com reprovação.
Mateus sentiu o rosto a arder de vergonha. Ajoelhou-se para apanhar os cacos, as mãos a tremer.
Sofia observava-o, o olhar frio como gelo. Não havia um pingo de compaixão no seu rosto. Apenas desprezo.
Leonardo sorria, divertido com a humilhação.
"Levanta-te," ordenou Tiago. "Ainda não acabaste."
Tiago pegou num guardanapo sujo do chão e atirou-o para a frente de Mateus.
"Limpa isto. Com as mãos."
Mateus olhou para o guardanapo, depois para Sofia. Ela não desviou o olhar. A sua frieza era uma faca no peito dele.
Ele ia recusar. A sua dignidade já fora espezinhada vezes sem conta na prisão.
Mas depois lembrou-se de Sagres. Do seu último desejo. Precisava daquele emprego. Precisava daquele dinheiro.
Curvou-se e começou a limpar a sujidade com as mãos, sentindo os olhares de todos cravados nele. A desumanização da prisão tinha-o preparado para isto. Ou talvez não.
Sofia levantou-se abruptamente.
"Chega, Tiago."
A sua voz era cortante.
Ela tirou uma nota de cinquenta euros da carteira e atirou-a para o chão, perto de Mateus.
"Pelo teu... serviço."
Depois, virou-se para Leonardo. "Vamos embora, querido. Perdi o apetite."
Passaram por Mateus como se ele não existisse.
Mateus ficou ali, ajoelhado, o dinheiro sujo a seus pés.
Mais tarde, enquanto limpava a cozinha, ouviu os sons inconfundíveis de Sofia e Leonardo no pequeno escritório do gerente, que ficava ao lado. Gemidos, risos. A tortura era requintada. Cada som era uma nova punhalada no seu coração já despedaçado.