Ouviu as gargalhadas de Leonardo e dos seus amigos. Sofia deu-lhe as costas e afastou-se, o corpo rígido de raiva.
Deixaram-no ali, na escuridão gelada. A corrente era forte. A dor no seu corpo, já debilitado pelo cancro, era intensa.
Mas ele pensou em Sagres. Pensou nas cinzas ao vento.
Mergulhou repetidamente, as mãos a vasculhar o lodo frio do fundo do rio. Horas passaram. O frio entranhava-se-lhe nos ossos. Sentia os pulmões a arder.
Finalmente, quando o sol começava a raiar, os seus dedos tocaram em algo metálico. O anel.
Exausto, cambaleou para fora da água, tremendo incontrolavelmente. Tinha cortes e arranhões por todo o corpo.
Caminhou até à casa principal. Sofia estava na varanda, a tomar o pequeno-almoço com Leonardo.
Mateus estendeu o anel.
Sofia pegou nele, sem uma palavra. Tirou uma nota da carteira e deu-lha. A mesma transação fria.
Ele aceitou em silêncio.
Nas semanas seguintes, houve uma calma tensa. Mateus continuava o seu trabalho, suportando as pequenas humilhações diárias. A sua saúde piorava, mas ele escondia a dor.
Uma noite, estava a conduzir Sofia para o seu apartamento em Lisboa. Ela tinha ido à capital para tratar de negócios da empresa.
Ao chegarem, viram fumo a sair de uma das janelas do prédio. O apartamento de Sofia.
Um incêndio.
O instinto de Mateus foi mais forte do que qualquer ressentimento, qualquer dor.
"Fique aqui!" gritou ele para Sofia, que estava paralisada pelo choque.
Correu para dentro do prédio em chamas. O fumo era denso, sufocante. Ouviu os gritos de Sofia lá fora.
Encontrou-a no quarto, encurralada pelas chamas, a tossir violentamente.
Sem hesitar, pegou nela ao colo, cobrindo-lhe o rosto com o seu casaco. Atravessou o corredor em chamas, sentindo o calor a queimar-lhe a pele, os cabelos.
Conseguiu sair do prédio mesmo a tempo de uma viga em chamas desabar onde tinham estado segundos antes.
Depositou Sofia, sã e salva, nos braços de Leonardo, que tinha chegado entretanto, alertado por um telefonema frenético de Sofia antes de Mateus entrar.
"Leva-a daqui," disse Mateus a Leonardo, a voz rouca por causa do fumo. "Diz que foste tu que a salvaste."
Leonardo olhou para ele, confuso, mas depois a compreensão brilhou nos seus olhos. Assentiu.
Mateus afastou-se, desaparecendo na confusão dos bombeiros e da polícia que chegavam.
Mais tarde, no hospital improvisado montado no local, Leonardo, com alguns arranhões superficiais e o cabelo chamuscado para dar credibilidade à história, era o herói. Sofia olhava para ele com admiração e gratidão.
Leonardo aproximou-se de Mateus, que estava a ser tratado por queimaduras ligeiras nos braços e no rosto.
"Porque é que fizeste aquilo, Mateus? Porque é que me deixaste ficar com os louros?"
E depois, a pergunta que o atormentava há anos.
"Foste mesmo tu... que causaste a morte da mãe dela?"
Mateus hesitou por um momento. Olhou para Sofia, que abraçava Leonardo, a personificação da felicidade e do alívio.
"Sim," disse Mateus, a voz firme. "Fui eu."
Virou-se e afastou-se, deixando Leonardo com as suas dúvidas.
Sofia e Leonardo pareciam mais próximos do que nunca. Mateus observava-os de longe, o pária, o vilão. Aceitava o seu papel. A felicidade dela era tudo o que importava.
Alguns dias depois, Sofia entrou no pequeno quarto que Mateus ocupava nos fundos da casa do Porto, sem avisar. Ele estava a trocar o penso de uma queimadura mais grave nas costas, que tinha escondido de todos.
"O que é isso?" perguntou ela, a voz surpreendentemente suave.
Os seus olhos fixaram-se na queimadura.
"Como é que fizeste isso?"
Ela estava a juntar as peças. A proximidade do incêndio, as suas queimaduras.