"Isso é por causa daquele rapaz, o Lucas?" perguntou o padre, os seus olhos perspicazes fixos em João Pedro, "Isabela falou-me dele, um músico talentoso que ela está a ajudar, um protegido."
A palavra "protegido" fez o estômago de João Pedro revirar.
"Ela disse-lhe que ele a salvou?"
"Sim, salvou a sua carreira num caso importante, ela sente-se em dívida, é natural que ela o queira ajudar, a Isabela sempre teve um coração generoso."
João Pedro sentiu um aperto no peito, uma sensação de sufoco.
Generosidade? Ou cegueira?
Ele não disse nada, mas a sua mente voltou à tarde anterior, a imagem gravada a fogo na sua memória.
Ele tinha chegado mais cedo ao escritório de arquitetura, o espaço moderno e minimalista que ele e Isabela tinham projetado juntos, o símbolo do seu futuro partilhado.
A porta do seu estúdio privado estava entreaberta.
Lá dentro, Isabela estava de costas para a porta, nos braços de um homem que João Pedro nunca tinha visto.
O abraço não era de amizade, era íntimo, apertado, a cabeça dela descansava no ombro dele, os olhos fechados como se estivesse a absorver a sua força.
João Pedro ficou paralisado.
O som dos seus passos, por mais leves que fossem, quebrou o momento.
Isabela afastou-se rapidamente, o rosto corado, mas sem culpa.
"João Pedro! Chegaste cedo," disse ela, com um sorriso radiante, "Quero apresentar-te o Lucas."
O homem, Lucas, virou-se, ele era magro, com cabelo comprido e um ar de artista sofrido, os seus olhos, no entanto, eram frios e calculistas.
"Prazer," disse Lucas, a sua voz suave, mas com um tom que irritou João Pedro instantaneamente.
"Este é o homem de quem te falei," continuou Isabela, animada, "O músico que me ajudou a ganhar o caso Ferraz, se não fosse por ele, a minha carreira estaria arruinada."
João Pedro sentiu uma dor aguda, ele sabia o quão importante aquele caso era para ela, e agora, este estranho era o herói.
Ele, que a apoiara durante anos, que celebrara cada vitória e a consolara em cada derrota, era agora um mero espectador.
A sua relação de uma vida, o amor que todos na cidade viam como um conto de fadas, parecia de repente frágil, invadido por um recém-chegado.
Ele tentou engolir a sua dor, forçar um sorriso.
"Fico feliz por teres tido ajuda," conseguiu dizer.
A memória desvaneceu-se, deixando um gosto amargo.
Ele olhou para o Padre Miguel.
"Padre, não é uma decisão impulsiva, é o resultado de muita dor."
O padre suspirou, sentando-se pesadamente numa cadeira de madeira.
"Meu filho, o casamento é um sacramento, um compromisso para a vida, não se pode desistir assim."
Antes que João Pedro pudesse responder, o seu telemóvel vibrou, era Isabela.
Ele ignorou.
A vibração parou, e um momento depois, começou de novo.
Ele atendeu, a sua voz tensa.
"Estou ocupado."
"Ocupado? João Pedro, estou no escritório, onde estás? O Lucas não tem para onde ir, os senhorios expulsaram-no, pensei que ele podia ficar na sala de reuniões por uns tempos, transformá-la num estúdio improvisado."
A proposta era tão absurda que João Pedro riu, um som seco e sem alegria.
"Isabela, aquele é o nosso escritório, um espaço profissional, não um abrigo para sem-abrigo."
"Não sejas insensível!" a voz dela tornou-se ríspida, "Ele não tem família, é órfão, passou por muito, temos de o ajudar, é o mínimo que podemos fazer depois do que ele fez por mim."
"Eu pago-lhe um hotel, um apartamento, o que ele quiser," ofereceu João Pedro, tentando manter a calma.
"Já lhe sugeri isso," a voz dela estava cheia de frustração, "Ele recusou, disse que não quer a nossa caridade, só um lugar para trabalhar a sua música em paz, por que és tão egoísta e ciumento?"
A acusação atingiu-o em cheio.
Ciumento? Sim, ele era.
Egoísta? Talvez.
Mas acima de tudo, ele sentia-se traído.
"Isabela, a tua compaixão por ele está a cegar-te."
Houve um silêncio tenso do outro lado da linha.
Então, uma voz suave, a de Lucas, soou ao fundo.
"Isabela, não discutas com ele por minha causa, eu vou-me embora, encontro outro sítio."
"Não!" a resposta de Isabela foi imediata e feroz, "Tu ficas aqui, esta é a minha decisão, o escritório também é meu, ele vai ter de aceitar."
João Pedro desligou o telemóvel.
O seu coração batia descontroladamente.
Ele olhou para o Padre Miguel, os seus olhos cheios de uma dor que já não conseguia esconder.
"Padre, acabou."