Sofia começou a arrumar suas malas naquela mesma manhã, o coração leve pela primeira vez em muito tempo.
A decisão de partir para Lisboa era um bálsamo.
Quando estava prestes a sair do quarto, deu de cara com Ricardo.
Ele parecia cansado, mas havia um brilho diferente em seus olhos, um que ela não via há muito tempo na vida passada.
Ela notou as marcas de batom discretas no colarinho da camisa dele, a mesma cor que Beatriz usava.
Uma pontada de algo que poderia ser ciúme, mas que ela rapidamente identificou como a confirmação dolorosa de que seu plano funcionara.
Desviou o olhar, tentando manter a compostura.
Ricardo interpretou seu silêncio e olhar desviado como ciúme.
"Sofia," ele começou, a voz rouca, "Beatriz e eu... nós nos aproximamos ontem à noite. Ela cuidou de mim."
Um aviso implícito.
"Eu sei, Ricardo. Fico feliz por vocês."
A frieza em sua própria voz a surpreendeu. Ela o chamara de "Ricardo", não "tio Ricardo" ou qualquer apelido carinhoso do passado.
Ele pareceu estranhar o tratamento formal.
"Sofia, você está diferente."
Antes que ela pudesse responder, Beatriz surgiu no corredor, radiante.
"Ricardo, querido! Ah, Sofia, bom dia."
O tom de Beatriz era falsamente doce.
Ricardo abraçou Beatriz pela cintura, um gesto possessivo.
"Sofia, querida, acho que seria melhor você se mudar para o quarto de hóspedes no andar de baixo. Beatriz vai ficar aqui comigo por uns tempos."
Humilhação. Mesmo sabendo que era necessário, doeu.
Ela era a filha do dono da casa, a casa que agora Ricardo administrava.
Beatriz fez uma cara de falsa modéstia.
"Ah, Ricardo, não precisa incomodar a Sofia. Eu posso ficar em outro lugar."
"De jeito nenhum, meu amor. Você fica aqui. Sofia não vai se importar, não é?"
O olhar dele era um desafio.
Sofia engoliu em seco. "Claro que não. Sem problemas."
Ela era a estranha agora. E isso era bom.
"Ótimo," Ricardo disse, satisfeito.
Sofia sentiu o peso da exclusão, mas também a urgência de sua partida.
Quanto antes saísse daquela casa, melhor.
"Com licença," ela disse, e desceu para o quarto de hóspedes, um cômodo menor e menos arejado.
Sua partida não poderia acontecer rápido o suficiente.
Nos dias seguintes, Sofia evitou Ricardo e Beatriz o máximo possível.
Mas era impossível não notar as demonstrações de afeto entre eles, os presentes caros que Ricardo dava a Beatriz, os jantares íntimos na varanda.
Cada cena era uma facada, não de ciúme, mas de lembrança do inferno que vivera.
Ela focou em seus preparativos para Lisboa, contatando os advogados do fundo fiduciário de seu pai, organizando documentos.
Numa tarde, enquanto empacotava alguns livros antigos e fotografias, decidiu que precisava se livrar de tudo que a prendesse a Ricardo.
Pegou uma caixa e começou a colocar nela todos os presentes que ele lhe dera ao longo dos anos, os bilhetes, os desenhos que fizera dele na adolescência.
Coisas que, na primeira vida, ela guardara como tesouros.
Agora, eram apenas lixo.
Estava levando a caixa para o depósito no jardim quando Ricardo a interceptou.
Ele parecia irritado.
"O que você está fazendo, Sofia? E por que está me evitando?"
A acusação a pegou de surpresa. Ela não achava que ele sequer notaria sua ausência.