"Hoje, vais beber. Uma garrafa por cada pessoa da minha família, e alguns amigos próximos que se foram por causa dos teus pais."
Sofia estremeceu, mas não disse nada. Sabia que era inútil.
"Tiago, os meus pais... eles morreram na prisão. Não foi suficiente?" A voz dela era um sussurro rouco.
Ele riu, um som sem alegria.
"Suficiente? Eles apodreceram numa cela por negligência, uma morte demasiado branda. A minha família foi desfeita em segundos, num inferno de metal retorcido e fogo, por causa da bebedeira deles. Achas que a morte deles paga a vida dos meus pais? Da minha irmãzinha, a Larinha, que nem sequer chegou a ver o seu décimo quinto aniversário?"
A dor na voz dele era palpável, mas rapidamente substituída pela crueldade habitual.
"Não, Sofia. A dívida deles, tu vais pagá-la. Por cada dia dos últimos cinco anos, e por cada dia que ainda te resta."
Ele fez um gesto. Dois seguranças corpulentos aproximaram-se de Sofia.
"Comecem."
Um deles abriu a primeira garrafa com um estalo seco, o cheiro adocicado do vinho invadindo a sala. Encheu um copo grande.
"Bebe," ordenou Tiago.
Sofia olhou para o líquido escuro, depois para o rosto implacável do marido. As lágrimas que ela já não tinha para chorar apertaram-lhe o peito.
Um dos seguranças agarrou-lhe o queixo, forçando-a a abrir a boca. O outro entornou o vinho.
O líquido gelado desceu-lhe pela garganta, provocando-lhe engasgos. Ela tossiu, o vinho a manchar-lhe o vestido simples.
"Mais," disse Tiago, impassível.
Copo após copo, o ritual macabro continuou. Sofia sentia o estômago revirar, a cabeça a andar à roda. A humilhação era quase tão má quanto o mal-estar físico.
"Quando... quando é que isto acaba, Tiago?" ela conseguiu balbuciar, entre golfadas de ar.
"Quando eu disser que acabou."
Nesse momento, a porta da sala de jantar abriu-se e uma jovem entrou. Era alta, esguia, com longos cabelos escuros e olhos brilhantes.
Sofia olhou para ela, e o seu coração parou por um instante.
A rapariga era a sua imagem cuspida, a imagem de Sofia antes do acidente, antes de cinco anos de sofrimento lhe roubarem o brilho e a juventude.
"Tiago, querido, o que se passa aqui?" A voz da recém-chegada era melodiosa, mas com um toque de impaciência.
Tiago, que até então não desviara os olhos de Sofia, virou-se para a jovem. A sua expressão suavizou-se instantaneamente, a frieza a dar lugar a uma ternura que Sofia não via há uma eternidade.
"Clara, meu amor. Nada de mais. Apenas a dar um presente à Sofia."
Clara Bastos aproximou-se, o seu olhar a varrer Sofia com desdém.
"Um presente? Ela não me parece muito grata. Mas também, o que se pode esperar de alguém como ela? Indigna." Clara encolheu os ombros delicadamente. "Anda, Tiago. Deixa-a com os seus... presentes. Temos coisas mais importantes para fazer."
Ela pegou na mão dele, afastando-o da cena.
Tiago hesitou por um momento, o seu olhar voltando para Sofia, que agora tremia violentamente. Depois, como se afastasse um pensamento incómodo, seguiu Clara.
Quando estavam quase a sair, Clara tropeçou ligeiramente, esbarrando numa pequena mesa lateral onde repousava uma jarra de cristal. A jarra caiu, estilhaçando-se no chão.
"Oh!" exclamou Clara, com uma falsa preocupação. "Que desastrada que eu sou!"
Sofia, que estava perto, instintivamente tentou aparar a queda, mas os seus reflexos estavam lentos. Um dos cacos maiores voou e cortou-lhe a mão. O sangue começou a escorrer.
Clara olhou para a mão de Sofia, depois para um pequeno arranhão no seu próprio braço, quase invisível.
"Ai, Tiago, olha! Arranhei-me!" choramingou Clara, mostrando-lhe o braço.
Tiago correu para o lado dela, ignorando completamente Sofia e a sua mão a sangrar.
"Deixa-me ver, meu amor! Estás bem? Dói muito?" Ele pegou no braço de Clara com uma delicadeza infinita, soprando suavemente sobre o arranhão.
Sofia olhou para a cena, o coração a afundar-se ainda mais. A dor física na sua mão não era nada comparada à dor emocional que a consumia.
Tiago beijou o arranhão de Clara. "Anda, vamos tratar disto. E tu," ele disse, virando-se para Sofia com um olhar gélido, "continua. Ainda tens muitas garrafas pela frente."
Ele pegou em Clara ao colo, como se ela fosse a coisa mais preciosa do mundo. Ao passar por Sofia, murmurou, para que só ela ouvisse, usando um diminutivo que outrora fora só dela: "A minha Sofi... não, a minha Clara, precisa de cuidados."
Ele saiu, deixando Sofia com os seguranças, o sangue a pingar no chão e o eco das suas palavras cruéis.
Um dos seguranças suspirou. "Senhora, por favor..."
Sofia olhou para as garrafas restantes. O seu olhar perdeu-se nelas, e as memórias vieram, como sempre vinham nestes momentos de desespero.
Lembrou-se de Tiago, o seu Tiago, antes do ódio. O rapaz com quem crescera, o seu primeiro e único amor. As tardes passadas a correr pelos vinhedos do Douro, as promessas sussurradas sob o luar. O dia em que ele a pedira em casamento, ali mesmo, naquela quinta que agora era a sua prisão.
E depois, o dia do acidente. O dia que deveria ter sido o mais feliz das suas vidas. A festa de noivado, a alegria, a bebida a fluir. Os pais dela, donos de uma pequena padaria tradicional, felizes, talvez demasiado felizes, demasiado embriagados. Insistiram em conduzir de volta para casa, apesar dos avisos.
No cruzamento, não viram o carro que se aproximava. O carro onde seguia a família de Tiago: os pais, a irmã mais nova, a caminho para se juntarem à celebração.
O casamento transformou-se num funeral. O amor de Tiago transformou-se num ódio avassalador.
Os pais de Sofia foram presos. A influência de Tiago, mesmo que indireta, pairava sobre o caso. Negligência médica, desespero. Morreram na prisão com poucos meses de diferença. As suas últimas palavras para Sofia foram uma súplica, uma promessa: "Aguenta, minha filha. Aguenta por cinco anos. Se depois disso, não houver esperança, junta-te a nós."
Cinco anos. Cinco anos de tortura psicológica, de privações, de ver o homem que amava a transformá-la no alvo de toda a sua dor. Ela vivia apenas por aquela promessa.
Clara aparecera há três meses. Uma substituta, escolhida a dedo pela sua semelhança com a Sofia de outrora. Tiago cobria-a de afecto, de presentes, de tudo o que negara a Sofia. E Sofia via tudo, cada beijo, cada abraço, cada palavra carinhosa dirigida à outra, era uma faca a revirar-lhe as entranhas.
Faltavam apenas sete dias para o fim da promessa. Sete dias.
Sofia agarrou uma pequena fotografia de família, amarrotada e manchada com uma gota seca do seu próprio sangue de um ferimento anterior. Os rostos sorridentes dos seus pais olhavam para ela.
"Mãe, pai... em breve," sussurrou ela, a voz embargada. "Em breve estarei convosco."
Os seguranças observavam-na, desconfortáveis, mas cumprindo ordens. O vinho continuava a ser servido.