Nenhum som me respondeu, apenas o silêncio pesado da adega.
A amante dele, Sofia Neves, uma artista de Lisboa, precisava de um transplante de medula óssea. Um dador raro. E a única compatível era a minha mãe.
A minha mãe, que já tinha uma saúde frágil.
Eu opus-me. Gritei. Implorei.
E esta foi a resposta dele.
Encostei-me à porta, o frio da madeira a atravessar a minha roupa, e deslizei até ao chão. O meu corpo tremia, não só de frio, mas de uma raiva e desespero que me consumiam.
Como é que o homem que, noutra vida, deu tudo por mim, se podia ter tornado neste monstro?
O frio intenso da adega começou a infiltrar-se nos meus ossos, e com ele, as memórias vieram em catadupa, nítidas e dolorosas.
Não eram sonhos. Eram a minha vida. A minha vida anterior.
Lembrei-me de como desprezava Duarte, do nosso casamento arranjado para salvar a empresa têxtil da minha família, uma empresa histórica, mas à beira da falência.
Eu estava apaixonada por Tiago, o meu amigo de infância, cuja família era rival dos Moreno na produção de vinho.
Ele sussurrava-me promessas de amor e liberdade, enquanto, às escondidas, planeava a minha ruína e a dos Moreno.
A memória do sequestro atingiu-me como um soco. Fui raptada por ordem de Tiago. Ele queria o controlo das vinhas dos Moreno.
E Duarte... o meu nobre e tolo Duarte... pagou o resgate.
Para me salvar, ele vendeu uma a uma as vinhas mais preciosas da sua família, terras que lhes pertenciam há séculos, o coração do seu império de Vinho do Porto. Ele sacrificou o seu legado por mim.
E eu? Quando fui libertada, acusei-o. Disse-lhe que ele tinha destruído a sua família por nada, que eu nunca o amaria.
A memória seguinte era de fogo. Tiago, num ato final de desespero e maldade, incendiou a nossa casa.
Eu estava presa nos escombros, a fumaça a encher os meus pulmões. E Duarte correu para dentro. Ele não tentou escapar. Ele veio ter comigo.
Abraçou o meu corpo inerte, e as suas últimas palavras ecoaram na minha mente, tão claras como se tivessem sido ditas há um segundo.
"Leonor... mesmo que morras... morrerei contigo."
Ele morreu a abraçar-me, o seu corpo a proteger-me das chamas que nos consumiram a ambos.
E depois... eu renasci.
Acordei no dia do meu casamento com Duarte, nesta nova vida. Com a memória do seu sacrifício a queimar-me a alma, o meu único desejo era amá-lo. Compensá-lo por tudo.
Mas o homem que encontrei não era o meu Duarte.
Este Duarte era frio, distante, cruel. E agora, ao trancar-me nesta adega, ao forçar a minha mãe a uma cirurgia perigosa por causa da sua amante... a verdade atingiu-me com a força de uma revelação divina e terrível.
Ele também se lembrava.
Ele também tinha renascido.
A sua crueldade não era indiferença. Era vingança. Um teste monstruoso para ver se o meu arrependimento era real.
Sentei-me no chão frio da adega, e pela primeira vez nesta nova vida, não chorei por mim. Chorei por ele. Pela dor que ele devia estar a carregar para me tratar desta forma.
A porta abriu-se horas depois. Um dos homens de Duarte olhou para mim sem expressão.
"A doação foi concluída. O senhor Moreno disse que pode sair."
Levantei-me, as minhas pernas dormentes. Subi as escadas e fui direta ao hospital. A minha mãe estava pálida na cama, mas estável. Os meus pais olharam para mim, os seus rostos uma máscara de culpa e impotência.
"Filha..." começou o meu pai.
"Eu estou bem," menti. "Vou resolver isto."
Voltei para a quinta. Duarte estava no escritório, a olhar pela janela para as vinhas. Sofia não estava à vista.
Ele virou-se quando entrei. O seu rosto era uma escultura de indiferença.
"A tua mãe está bem," disse ele, a sua voz desprovida de qualquer calor. "A dívida da tua família está um pouco mais perto de ser paga."
A frieza dele era uma parede de gelo. Mas agora eu via as fissuras. Eu via a dor por trás dela.
"Duarte," comecei, a minha voz a tremer. "Nós precisamos de falar."
"Não temos nada para falar," cortou ele. "Apenas cumpre o teu papel como minha mulher. É o mínimo que podes fazer."
Aproximei-me dele. Precisava de uma confirmação. Uma prova.
Lembrei-me de um pequeno detalhe da nossa vida passada. Algo que só ele podia saber.
"Outro dia, na festa, serviram camarão. Tu trocaste o meu prato. Disseste que o chefe se tinha enganado no pedido."
Ele não reagiu.
"Eu só descobri a minha alergia a marisco no nosso segundo ano de casados, na vida passada. Como é que sabias, Duarte?"
Ele olhou para mim, e por um segundo, vi um vislumbre de algo nos seus olhos. Dor. Mas desapareceu tão depressa como apareceu.
Ele forçou um sorriso trocista.
"A tua mãe mencionou-o uma vez, há muito tempo. Tenho boa memória para detalhes inúteis."
Era uma desculpa plausível. Mas era uma mentira. Eu sabia.
A minha última réstia de esperança vacilou. Se ele ia continuar a negar, a torturar-me assim, talvez não houvesse redenção para nós.
Fui ao meu quarto e peguei nos papéis do divórcio que um advogado tinha preparado para mim há semanas, num momento de desespero. Eu não os queria usar, mas agora...
Voltei ao escritório. Ele estava a falar ao telefone, a sua voz subitamente mais suave.
"Sim, Sofia... estou a ir. Descansa."
Ele desligou e olhou para mim, a sua máscara de frieza de volta no lugar.
Estendi-lhe os papéis e uma caneta.
"O que é isto?" perguntou ele.
"Divórcio," disse eu, a palavra a arranhar a minha garganta.
Ele pegou nos papéis. Nem sequer olhou para eles. O seu olhar estava fixo em mim, frio e calculista. Enquanto isso, a sua outra mão pegou numa escova de prata da secretária e começou a passar por um lenço de seda que pertencia a Sofia, como se estivesse a pentear o cabelo dela.
O gesto era tão íntimo, tão desdenhoso para comigo, que me roubou o ar.
Ele assinou o seu nome com um floreado rápido e atirou os papéis para cima da secretária.
"Estás livre, Leonor. Assim que o período de reflexão legal terminar."
Ele virou-me as costas e saiu da sala, deixando-me ali, com o coração partido e uma certeza terrível.
Esta guerra estava apenas a começar.