O Naufrágio da Minha Alma
img img O Naufrágio da Minha Alma img Capítulo 1
2
Capítulo 5 img
Capítulo 6 img
Capítulo 7 img
Capítulo 8 img
Capítulo 9 img
Capítulo 10 img
Capítulo 11 img
Capítulo 12 img
Capítulo 13 img
Capítulo 14 img
Capítulo 15 img
Capítulo 16 img
Capítulo 17 img
Capítulo 18 img
Capítulo 19 img
Capítulo 20 img
Capítulo 21 img
Capítulo 22 img
Capítulo 23 img
Capítulo 24 img
img
  /  1
img

Capítulo 1

A adega da quinta dos Moreno no Douro era fria e húmida, o cheiro a mofo e a terra molhada entrava-me pelas narinas.

A porta de madeira pesada fechou-se com um baque surdo, mergulhando-me na escuridão.

Lá fora, ouvi a voz fria e sem emoção do meu marido, Duarte Moreno.

"Tranquem-na. Não a deixem sair até a doação estar concluída."

Os seus homens obedeceram sem uma palavra. A chave girou na fechadura, um som metálico e final.

Bati na porta com os punhos, a minha voz a ecoar no espaço vazio.

"Duarte! Não podes fazer isto! É a minha mãe!"

Nenhum som me respondeu, apenas o silêncio pesado da adega.

A amante dele, Sofia Neves, uma artista de Lisboa, precisava de um transplante de medula óssea. Um dador raro. E a única compatível era a minha mãe.

A minha mãe, que já tinha uma saúde frágil.

Eu opus-me. Gritei. Implorei.

E esta foi a resposta dele.

Encostei-me à porta, o frio da madeira a atravessar a minha roupa, e deslizei até ao chão. O meu corpo tremia, não só de frio, mas de uma raiva e desespero que me consumiam.

Como é que o homem que, noutra vida, deu tudo por mim, se podia ter tornado neste monstro?

O frio intenso da adega começou a infiltrar-se nos meus ossos, e com ele, as memórias vieram em catadupa, nítidas e dolorosas.

Não eram sonhos. Eram a minha vida. A minha vida anterior.

Lembrei-me de como desprezava Duarte, do nosso casamento arranjado para salvar a empresa têxtil da minha família, uma empresa histórica, mas à beira da falência.

Eu estava apaixonada por Tiago, o meu amigo de infância, cuja família era rival dos Moreno na produção de vinho.

Ele sussurrava-me promessas de amor e liberdade, enquanto, às escondidas, planeava a minha ruína e a dos Moreno.

A memória do sequestro atingiu-me como um soco. Fui raptada por ordem de Tiago. Ele queria o controlo das vinhas dos Moreno.

E Duarte... o meu nobre e tolo Duarte... pagou o resgate.

Para me salvar, ele vendeu uma a uma as vinhas mais preciosas da sua família, terras que lhes pertenciam há séculos, o coração do seu império de Vinho do Porto. Ele sacrificou o seu legado por mim.

E eu? Quando fui libertada, acusei-o. Disse-lhe que ele tinha destruído a sua família por nada, que eu nunca o amaria.

A memória seguinte era de fogo. Tiago, num ato final de desespero e maldade, incendiou a nossa casa.

Eu estava presa nos escombros, a fumaça a encher os meus pulmões. E Duarte correu para dentro. Ele não tentou escapar. Ele veio ter comigo.

Abraçou o meu corpo inerte, e as suas últimas palavras ecoaram na minha mente, tão claras como se tivessem sido ditas há um segundo.

"Leonor... mesmo que morras... morrerei contigo."

Ele morreu a abraçar-me, o seu corpo a proteger-me das chamas que nos consumiram a ambos.

E depois... eu renasci.

Acordei no dia do meu casamento com Duarte, nesta nova vida. Com a memória do seu sacrifício a queimar-me a alma, o meu único desejo era amá-lo. Compensá-lo por tudo.

Mas o homem que encontrei não era o meu Duarte.

Este Duarte era frio, distante, cruel. E agora, ao trancar-me nesta adega, ao forçar a minha mãe a uma cirurgia perigosa por causa da sua amante... a verdade atingiu-me com a força de uma revelação divina e terrível.

Ele também se lembrava.

Ele também tinha renascido.

A sua crueldade não era indiferença. Era vingança. Um teste monstruoso para ver se o meu arrependimento era real.

Sentei-me no chão frio da adega, e pela primeira vez nesta nova vida, não chorei por mim. Chorei por ele. Pela dor que ele devia estar a carregar para me tratar desta forma.

A porta abriu-se horas depois. Um dos homens de Duarte olhou para mim sem expressão.

"A doação foi concluída. O senhor Moreno disse que pode sair."

Levantei-me, as minhas pernas dormentes. Subi as escadas e fui direta ao hospital. A minha mãe estava pálida na cama, mas estável. Os meus pais olharam para mim, os seus rostos uma máscara de culpa e impotência.

"Filha..." começou o meu pai.

"Eu estou bem," menti. "Vou resolver isto."

Voltei para a quinta. Duarte estava no escritório, a olhar pela janela para as vinhas. Sofia não estava à vista.

Ele virou-se quando entrei. O seu rosto era uma escultura de indiferença.

"A tua mãe está bem," disse ele, a sua voz desprovida de qualquer calor. "A dívida da tua família está um pouco mais perto de ser paga."

A frieza dele era uma parede de gelo. Mas agora eu via as fissuras. Eu via a dor por trás dela.

"Duarte," comecei, a minha voz a tremer. "Nós precisamos de falar."

"Não temos nada para falar," cortou ele. "Apenas cumpre o teu papel como minha mulher. É o mínimo que podes fazer."

Aproximei-me dele. Precisava de uma confirmação. Uma prova.

Lembrei-me de um pequeno detalhe da nossa vida passada. Algo que só ele podia saber.

"Outro dia, na festa, serviram camarão. Tu trocaste o meu prato. Disseste que o chefe se tinha enganado no pedido."

Ele não reagiu.

"Eu só descobri a minha alergia a marisco no nosso segundo ano de casados, na vida passada. Como é que sabias, Duarte?"

Ele olhou para mim, e por um segundo, vi um vislumbre de algo nos seus olhos. Dor. Mas desapareceu tão depressa como apareceu.

Ele forçou um sorriso trocista.

"A tua mãe mencionou-o uma vez, há muito tempo. Tenho boa memória para detalhes inúteis."

Era uma desculpa plausível. Mas era uma mentira. Eu sabia.

A minha última réstia de esperança vacilou. Se ele ia continuar a negar, a torturar-me assim, talvez não houvesse redenção para nós.

Fui ao meu quarto e peguei nos papéis do divórcio que um advogado tinha preparado para mim há semanas, num momento de desespero. Eu não os queria usar, mas agora...

Voltei ao escritório. Ele estava a falar ao telefone, a sua voz subitamente mais suave.

"Sim, Sofia... estou a ir. Descansa."

Ele desligou e olhou para mim, a sua máscara de frieza de volta no lugar.

Estendi-lhe os papéis e uma caneta.

"O que é isto?" perguntou ele.

"Divórcio," disse eu, a palavra a arranhar a minha garganta.

Ele pegou nos papéis. Nem sequer olhou para eles. O seu olhar estava fixo em mim, frio e calculista. Enquanto isso, a sua outra mão pegou numa escova de prata da secretária e começou a passar por um lenço de seda que pertencia a Sofia, como se estivesse a pentear o cabelo dela.

O gesto era tão íntimo, tão desdenhoso para comigo, que me roubou o ar.

Ele assinou o seu nome com um floreado rápido e atirou os papéis para cima da secretária.

"Estás livre, Leonor. Assim que o período de reflexão legal terminar."

Ele virou-me as costas e saiu da sala, deixando-me ali, com o coração partido e uma certeza terrível.

Esta guerra estava apenas a começar.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022