A chuva forte batia contra o para-brisas partido, misturando-se com o sangue na minha testa. O carro estava virado de lado, preso contra a barreira da autoestrada. A minha mãe, no banco do passageiro, estava desmaiada, com um corte feio na cabeça.
Eu tinha dores. Uma dor terrível e aguda no meu ventre de oito meses.
Com as mãos a tremer, peguei no meu telemóvel. O ecrã estava estalado, mas ainda funcionava. Disquei o número do meu marido, Pedro.
O meu primeiro instinto, a minha única esperança.
O telefone chamou uma, duas, três vezes. Quando eu estava prestes a desistir, ele atendeu. A sua voz era irritada, impaciente.
"Que queres, Sofia? Estou no meio de uma coisa."
"Pedro," a minha voz saiu como um sussurro rouco. "Tivemos um acidente. Na A5. O carro capotou. A mãe está inconsciente."
Fiz uma pausa, a dor a intensificar-se. "Eu estou a sangrar, Pedro. Acho que é o bebé."
Houve um silêncio do outro lado, mas não era de choque. Era de aborrecimento. Depois, ouvi outra voz ao fundo, uma voz feminina, a queixar-se.
"Ai, o meu tornozelo, dói tanto! Jorge, achas que está partido?"
Era a Clara, a meia-irmã do Pedro.
A voz do meu sogro, Jorge, respondeu imediatamente, cheia de preocupação. "Calma, querida. O Pedro já vai tratar disso. Ele é o melhor a fazer ligaduras."
O meu coração gelou.
"Pedro, por favor," implorei, as lágrimas a misturarem-se com a chuva e o sangue no meu rosto. "É sério. Preciso de ti."
"Sofia, para com o drama," ele respondeu, a sua voz dura. "A Clara torceu o tornozelo a descer as escadas por causa do raio da tempestade. Estou a tratar dela. Não posso simplesmente largar tudo por um arranhão. Liga para a emergência, eles servem para isso."
"Não é um arranhão! Eu posso perder o nosso filho!" gritei, o pânico a tomar conta de mim.
"E o que queres que eu faça? Que voe até aí? A Clara também está com dores! Pelo amor de Deus, sê um pouco compreensiva. Liga para o 112 e para de me chatear!"
Ele desligou.
Olhei para o ecrã do telemóvel, para a chamada terminada. Tentei ligar de novo. O número estava bloqueado.
Ele bloqueou-me.
Enquanto a minha mãe estava inconsciente e o nosso filho morria dentro de mim, o meu marido estava a cuidar de um tornozelo torcido. E bloqueou-me.
A dor no meu ventre tornou-se insuportável, uma onda de agonia que me roubou o fôlego. Depois, tudo ficou escuro.