Acordei com o cheiro a antisséptico e o som suave de um monitor cardíaco.
Estava num quarto de hospital privado.
A luz do sol entrava pela janela, mas o meu mundo estava escuro.
Uma enfermeira entrou, o seu sorriso gentil não alcançava os olhos.
"Sra. Clara, que bom que acordou. A senhora teve um aborto espontâneo. O stress e o choque..."
Ela não precisou de terminar. Eu sabia.
O meu pai e o meu bebé. Perdi-os ambos no mesmo dia.
A porta abriu-se e Miguel entrou.
Ele tinha a expressão de um homem profundamente preocupado, uma máscara que ele usava tão bem.
Sentou-se na beira da minha cama, tentando pegar na minha mão.
Afastei-a.
"Clara, meu amor, eu sinto muito", disse ele, a sua voz um sussurro ensaiado.
"A Sofia é uma benfeitora muito importante para o hospital. A doação dela vai construir uma nova ala pediátrica. Eu não podia simplesmente sair."
Ele fez uma pausa, à espera que eu compreendesse.
"O teu pai... a condição dele era muito grave. Mesmo que eu estivesse lá, as probabilidades eram mínimas."
Ele estava a desculpar a sua negligência, a minimizar a minha perda.
"Não fales do meu pai", disse eu, a minha voz vazia de qualquer emoção.
Ele suspirou, uma demonstração de paciência forçada.
"Olha, foi uma tragédia horrível. Mas nós vamos superar isto. Descansa, recupera. Depois, podemos tentar ter outro bebé."
Outro bebé.
Como se o filho que perdi fosse uma coisa substituível.
Virei a cabeça para ele, o meu olhar tão frio que ele recuou ligeiramente.
"Miguel."
"Sim, querida?"
"Eu quero o divórcio."
As palavras saíram calmas, claras e inabaláveis.
O choque no rosto dele foi real, desta vez. A máscara caiu, revelando o homem egoísta por baixo.
"O quê? Não sejas ridícula. Estás em choque. Não sabes o que estás a dizer."
"Eu nunca tive tanta certeza de nada na minha vida."
Ele levantou-se, a sua postura a mudar de preocupada para zangada.
"Estás a culpar-me por isto? Depois de tudo o que eu faço por nós? Pela minha carreira?"
"A tua carreira", repeti eu, a palavra a saber a cinzas na minha boca. "Foi por isso que o meu pai morreu."
"Isso não é justo!"
"Justo?", a minha voz subiu pela primeira vez. "Tu deixaste o meu pai morrer para flertares com uma atriz por causa de um pulso torcido. E por causa disso, eu perdi o nosso filho. Não me fales de justiça."
O silêncio no quarto era pesado, quebrado apenas pelo som do monitor cardíaco a marcar o meu coração partido.