A memória do acidente voltou com força total.
O som dos pneus a chiar no asfalto molhado, o grito agudo da Sofia no banco de trás, e depois o impacto violento que nos atirou para a frente.
O mundo girou, e depois ficou escuro.
Quando abri os olhos, a primeira coisa que vi foi o rosto do Pedro do lado de fora da janela partida do carro. Havia alívio nos seus olhos quando me viu acordada.
"Ana! Graças a Deus."
"Pai..." murmurei, virando a cabeça. O meu pai estava inconsciente no banco do passageiro, com um corte feio na testa a sangrar abundantemente. "Ajuda o pai!"
Mas os olhos do Pedro já se tinham desviado para o banco de trás.
"Sofia? Sofia, estás bem?"
"Pedro! Tira-me daqui! Eu não consigo respirar! Estou a ter um ataque!" A voz dela era um choro agudo e desesperado.
"Calma, estou a ir," disse o Pedro, a sua atenção completamente focada nela.
Ele ignorou o meu pedido. Ignorou o meu pai a sangrar. Ele foi para a porta de trás e começou a tentar abri-la à força.
"Pedro, o pai primeiro!" gritei, o pânico a tomar conta de mim. "Ele está ferido!"
"Ele está desmaiado, vai ficar bem! A Sofia está em pânico!" gritou ele de volta, sem sequer olhar para mim.
Vi-o finalmente arrancar a porta e puxar a Sofia para fora. Ela agarrou-se a ele, a soluçar histericamente, enquanto o meu pai continuava imóvel e a sangrar no carro.
Esse foi o momento em que algo dentro de mim se partiu.
A porta do quarto do hospital abriu-se, trazendo-me de volta ao presente.
O Pedro e a Sônia entraram. O Pedro tinha uma expressão contrariada, e a Sônia olhava para mim como se eu fosse um inseto.
"Viemos ver como estavas," disse o Pedro, sem convicção.
"E para te dizer para parares com esta parvoíce do divórcio," acrescentou a Sônia, cruzando os braços. "Tens de entender. A Sofia é como uma filha para mim. Ela é delicada. O Pedro fez a coisa certa."
Eu olhei para eles. Duas pessoas que eu um dia considerei família.
"A coisa certa?" repeti, a minha voz baixa. "Deixar o meu pai morrer para salvar a vossa 'delicada' Sofia de um ataque de pânico?"
"Não sejas tão melodramática," disse o Pedro, revirando os olhos. "Foi um acidente."
"Saiam," eu disse, apontando para a porta. "Saiam do meu quarto. Agora."
"Não fales assim com o teu marido e a tua sogra!" gritou a Sônia.
"Ele deixou de ser meu marido no momento em que deixou o meu pai para morrer," respondi, a minha voz a tremer de raiva. "E tu deixaste de ser minha sogra. Saiam."
O Pedro agarrou no braço da mãe dele. Pela primeira vez, vi um vislumbre de incerteza no seu rosto.
Eles saíram, fechando a porta atrás de si.
Fiquei sozinha com o som do monitor cardíaco e a imagem do meu pai a sangrar no carro.