O dia do funeral estava cinzento e húmido, a condizer com o meu estado de espírito.
Eu estava numa cadeira de rodas, com a minha perna engessada esticada à minha frente. Amigos e familiares do meu pai vieram prestar as suas últimas homenagens.
E, para meu horror, o Pedro e a Sônia também vieram.
Eles vestiam preto, com expressões de luto ensaiadas. A Sônia até tinha um lenço na mão, que ela passava nos olhos secos de vez em quando.
Eles circulavam entre os convidados, a receber condolências como se fossem a família mais próxima do enlutado.
"Foi uma tragédia terrível," ouvi a Sônia dizer a um primo afastado. "O meu Pedro foi tão corajoso, tentou salvar toda a gente."
A minha paciência esgotou-se.
Quando o padre terminou a sua homilia e convidou alguém a partilhar uma memória, eu empurrei as rodas da minha cadeira e fui para a frente.
O Pedro tentou intercetar-me. "Ana, o que estás a fazer?"
Eu ignorei-o. Posicionei-me ao lado do caixão do meu pai e peguei no microfone.
"Obrigada a todos por terem vindo," comecei, a minha voz a ecoar na capela silenciosa. "Muitos de vocês conheciam o meu pai como um homem de negócios inteligente, um amigo leal. Para mim, ele era tudo."
Fiz uma pausa, olhando diretamente para o Pedro e a Sônia.
"As pessoas estão a chamar a isto um 'acidente trágico'. Mas isso não é toda a verdade."
Um murmúrio percorreu a sala.
"A verdade é que o meu pai podia estar vivo hoje. Ele ficou preso no carro depois da colisão, a sangrar. O meu marido, Pedro, estava lá."
Todos os olhos viraram-se para o Pedro. Ele parecia pálido.
"Mas em vez de ajudar o meu pai, o homem que o acolheu como um filho, ele escolheu salvar outra pessoa primeiro. Uma pessoa que estava a ter um ataque de pânico."
A Sônia levantou-se. "Isso é mentira! Ela está em choque!"
"Não estou em choque," continuei, a minha voz a ganhar força. "Eu estava lá. Eu vi. Eu pedi-lhe para ajudar o meu pai, e ele ignorou-me. Ele deixou o meu pai a sangrar enquanto confortava a Sofia."
O nome pairou no ar. O silêncio na capela era total.
"Então, quando se lembrarem do meu pai, não se lembrem apenas de um acidente. Lembrem-se que ele foi uma vítima de uma escolha. Uma escolha cruel e egoísta feita pelo homem que se senta ali."
Apontei diretamente para o Pedro.
Ele ficou de pé, o rosto vermelho de fúria e humilhação.
"Como te atreves?" sibilou ele.
"Eu atrevo-me," respondi, largando o microfone. "Isto não é um espetáculo para o vosso luto falso. Por favor, saiam. Vocês não são bem-vindos aqui."
A Sônia agarrou no braço do Pedro e arrastou-o para a saída, lançando-me um olhar cheio de ódio.
Enquanto eles saíam sob os olhares chocados de todos, eu senti uma pequena, amarga sensação de vitória.
Era o início da minha justiça.