Saí do hospital com o atestado de óbito da minha mãe na mão. O sol do meio-dia estava forte, mas eu sentia um frio que vinha de dentro.
O médico disse que foi um ataque cardíaco fulminante, que não houve sofrimento.
Mentira. Eu sei que ela sofreu.
O meu telemóvel vibrou. Era o meu marido, Pedro. A sua foto de perfil mostrava-o a sorrir, abraçado à sua mãe, a minha sogra, Beatriz.
"Sofia, a tua mãe já fez o almoço? A minha mãe e eu estamos a caminho. Ela quer comer o bacalhau com natas da tua mãe."
A voz dele era animada, completamente alheia ao que tinha acontecido.
"Ela não vai poder fazer." A minha voz saiu rouca, sem emoção.
"O quê? Porquê? Ela está doente? Diz-lhe para não ser preguiçosa. A minha mãe fez um esforço para vir de longe só para provar a comida dela."
Um esforço. Como se vir à nossa casa fosse uma peregrinação sagrada.
"Pedro, a minha mãe morreu."
Silêncio do outro lado da linha. Durou uns cinco segundos.
Depois, a voz dele voltou, irritada.
"Morreu? Como assim, morreu? Estás a brincar comigo? Que piada de mau gosto é essa, Sofia?"
"Não é piada. Estou no hospital. Acabei de receber o atestado de óbito."
"Hospital? Porque é que não me ligaste antes? Sabes o quão ocupado eu estou? A minha mãe já está no carro, toda animada. O que é que eu lhe digo agora? Que a viagem foi em vão?"
A preocupação dele não era comigo, nem com a minha mãe. Era com a desilusão da mãe dele.
"Diz-lhe a verdade," respondi, sentindo um cansaço profundo a tomar conta de mim.
"A verdade? Sofia, pensa um pouco! A minha mãe tem o coração fraco, não lhe posso dar uma notícia destas assim de repente! Ela pode passar-se mal! Tens de ter mais consideração!"
A voz de Beatriz soou ao fundo, impaciente. "Pedro, o que se passa? Porque é que estamos parados? A Sofia já está a preparar tudo?"
Ele tapou o microfone, mas eu ainda ouvi a sua resposta abafada. "A mãe dela está a ser um pouco difícil, mãe. Já resolvo."
Ele voltou a falar comigo, a voz baixa e ameaçadora.
"Ouve, não faças uma cena. Diz que a tua mãe teve de sair de urgência. Inventa qualquer coisa. Quando chegarmos, logo vemos o que fazer. Não estragues o dia à minha mãe."
Desliguei a chamada.
O mundo parecia girar devagar. O meu marido, o homem com quem partilhei a cama durante cinco anos, estava mais preocupado em não estragar o almoço da sua mãe do que com a morte da minha.
Olhei para o atestado de óbito. Causa da morte: enfarte agudo do miocárdio.
Mas eu sabia a verdadeira causa. Foi o stress. Foi a humilhação. Foi a tristeza acumulada durante anos a servir uma família que nunca a viu como mais do que uma empregada gratuita.
O meu telemóvel tocou outra vez. Pedro. Rejeitei a chamada.
Ele mandou uma mensagem. "Atende o telefone, Sofia! Não sejas infantil!"
Outra. "A minha mãe está a ficar nervosa. A culpa vai ser tua se ela tiver um ataque!"
A ironia era tão cruel que me fez soltar uma risada seca, sem humor.
A minha mãe teve um ataque e morreu, e a culpa era dela por não ter avisado com antecedência. A mãe dele podia ter um ataque por causa de um almoço cancelado, e a culpa era minha.
Sentei-me num banco de paragem de autocarro, o papel a amassar-se na minha mão.
Durante anos, a minha mãe cozinhou, limpou e cuidou da casa para eles. Quando a Beatriz vinha visitar, a minha mãe passava dias a preparar os pratos preferidos dela, a limpar cada canto da casa, só para ouvir um "Está aceitável".
O Pedro nunca defendeu a minha mãe. Ele dizia sempre: "É o jeito dela, tens de compreender. Ela só quer o melhor para nós."
O melhor para ele.
A decisão formou-se na minha mente, clara e fria.
Isto acabou. O casamento, a subserviência, tudo.
Liguei de volta. Ele atendeu imediatamente, a voz a transbordar de raiva.
"Finalmente! O que é que tens na cabeça..."
"Pedro," interrompi-o, a minha voz firme. "Vamos divorciar-nos."
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