O meu pai morreu.
O médico entregou-me o atestado de óbito, e a sua voz era baixa.
"Senhora, as minhas condolências, fizemos tudo o que podíamos."
Olhei para o papel branco, e as palavras pareciam desfocadas. A hora da morte: 15h30.
Nessa hora, eu estava a ligar para o meu marido, Pedro. Liguei-lhe dezoito vezes.
Ele não atendeu nenhuma.
Agora, o corpo do meu pai estava deitado na morgue fria, coberto por um lençol branco.
O meu mundo desabou.
Tirei o telemóvel do bolso, com os dedos a tremer, e disquei o número de Pedro novamente.
Tinha de lhe contar. Tinha de lhe dizer que o meu pai, que o tratava como um filho, tinha falecido.
O telefone tocou durante muito tempo, um som frio e vazio que ecoava no corredor silencioso do hospital.
Quando eu estava prestes a desistir, ele finalmente atendeu. A sua voz estava cheia de impaciência.
"O que foi agora, Lúcia? Estou ocupado!"
Do outro lado da linha, ouvi uma voz feminina, suave e fraca.
"Pedro, a minha mão dói tanto, podes massajá-la para mim? O médico disse que preciso de descansar bem."
Era a voz de Clara, a minha "irmã" adotiva, a filha de um amigo falecido dos pais de Pedro.
A sua voz era delicada, como se fosse quebrar a qualquer momento.
Pedro respondeu-lhe imediatamente, o seu tom a mudar de irritado para gentil.
"Claro, claro, descansa. Eu trato de tudo."
Senti um nó na garganta.
Respirei fundo e disse, com a voz rouca.
"Pedro, o meu pai..."
Ele interrompeu-me bruscamente.
"O que tem o teu pai? Ele não está bem? Não me ligues por coisas pequenas, a Clara caiu e magoou o pulso, estou no hospital com ela. Ela é frágil, precisa de mim."
Frágil? O meu pai estava a morrer, e ele estava preocupado com um pulso magoado?
As lágrimas que eu tinha segurado começaram a cair, quentes e silenciosas.
"Pedro, vamos divorciar-nos."
A minha voz era um sussurro, mas soou alta no silêncio.
Houve uma pausa de dois segundos. Depois, a raiva de Pedro explodiu.
"Divórcio? Ficaste maluca? Só porque não atendi as tuas chamadas? Eu estava a cuidar da Clara! Ela não tem ninguém, Lúcia! Tens de ser mais compreensiva!"
Compreensiva?
O meu pai morreu sozinho enquanto o meu marido cuidava de outra mulher. Que tipo de compreensão ele queria de mim?
"Ela não tem ninguém?" perguntei, a minha voz a tremer de raiva contida. "E eu? Eu agora também não tenho ninguém."
"Não sejas dramática! O teu pai só deve estar com uma gripe ou algo assim. Para de fazer uma tempestade num copo de água! Falamos quando eu chegar a casa. A Clara precisa de mim agora."
Ele desligou.
O som do "bip" final foi como um golpe no meu peito.
Tentei ligar de volta. O número estava bloqueado.
Deixei o telemóvel cair. Ele bateu no chão com um som surdo.
Olhei para a porta fechada da morgue.
O meu pai estava lá dentro. Sozinho.
Ele sempre me disse que Pedro era um bom homem, que cuidaria de mim.
Ele estava enganado.
E eu estava enganada por ter acreditado nele.
A decisão estava tomada. Não havia volta a dar. O divórcio não era uma ameaça, era uma promessa.
Uma promessa a mim mesma.